Na prossecução do seu principal objectivo de resgatar a história da radiodifusão em Cabo Verde, o KRIOL RÁDIO orgulha-se de apresentar na íntegra as respostas a um questionário enviado ao jornalista Fonseca Soares (Tchá para os colegas e amigos). Um jornalista experiente, um comunicar por excelência, e um verdadeiro homem da rádio (radialista). Sem dúvida uma referência para a actual geração de jornalistas de rádio.
Ajude-nos também a contar a história da Rádio em Cabo Verde.
KRIOL RÁDIO: Como era a rádio naquele tempo quando começaste a trabalhar?
Fonseca Soares: Encontrei uma Rádio que aprendi a reconhecer como profissional, apesar da estrutura amadora. Uma pequena estação emissora emitindo em Ondas Curtas – depois em simultâneo também Frequência Modulada – com três períodos de emissão diários, perfazendo um total de oito horas/dia. Mas começando pelo início, a Rádio Barlavento que descobri no ano 1971, era bastante bem organizada a ponto de ter concebido testes específicos para triagem de candidatos a estágios de radialistas. Para discotecário, para ajudante de estúdio (operador de som) e para locutor (apresentador). Na altura ainda não havia a classe de jornalistas na colónia.
No caso do candidato a locutor, além de habilitações literárias era necessário passar por um teste de leitura e gravação de ‘papéis utilizados’ nos jornais da estação, com um colectivo de júris (reconhecidos homens da literatura) a aquilatar do mínimo de condições para se ser aceite em estágio. Notava-se desde logo, que havia um perfil bem definido para radialista crioulo que começava pelo timbre da voz e acabando na dicção e um certo nível de cultura geral.
Nunca me esquecerei do dia em que – após várias noites de desassossego – chamado para os resultados do teste de admissão, o director executivo da estação, Telmo Bárrio Vieira, me confidenciou o seu dilema: “que eu tinha conseguido boas notas e passado nos testes mas que não podia me admitir sequer para estágio como locutor, pois não tinha idade para ser chefe de ninguém; que do organigrama da estação se aferia que o locutor era quem assumia a chefia da equipa de serviço… e que eu nem podia ser chefe de mim mesmo. Fiquei mudo e quedo.
Na mente, em turbilhão, o cenário de um desmoronar precoce do sonho que me habitava há muito, não obstante os meus quinze anos na altura. Perante o meu silêncio, o sr. Telmo sentiu-se obrigado a avançar com uma proposta alternativa. O máximo que podia fazer por mim… era deixar-me entrar para o estágio de ‘ajudante de estúdio’… que assim sendo já estaria na ‘casa’… quem sabe se dali a alguns anos já poderia ‘entrar’ para locutor… Sem pensar, acho que a resposta nasceu mesmo na boca: “Sim senhor, eu quero!”
Isto já serve para dar uma ideia da organização da então Rádio Barlavento. Com hierarquias bem definidas. Um director que quase nunca víamos (um Dr. Aníbal Lopes da Silva mais preocupado com arranjar os meios, além da direcção do Grémio); um director executivo e técnico omnipresente; equipas de serviço formadas por uma dupla de locutor e ajudante de estúdio; com horários pós laboral pré-definidos e em escalas próprias.
Afora isso, uma discoteca/bandoteca bem gerida e bem servida, com o papel de programar todas as músicas de cada das rubricas da programação global da estação. De realçar que só em ‘programas de autor’ se tinha o ónus de poder rodar músicas do gosto da equipa de serviço. Aliás uma Programação de onde se poderia aferir da preocupação em ter um política de rodagem/passagem de música: à volta de 50% do tempo se rodava a chamada ‘música da nossa terra’; uns 30% de música portuguesa; e o restante, para música estrangeira que, também ela, era muito rica na discoteca pois era alimentada por acordos/contratos com distribuidoras portuguesas (da então ‘metrópole’).
No que à Informação diz respeito, tirando o facto de notícias locais serem quase que inexistentes (e só em momentos especiais merecerem honras de notícia – para mais, escritas fora da estação!), o mesmo se poderá avançar em relação à forma como, todos os dias, e em todos os jornais (das treze e das vinte) se apresentavam notícias nacionais (Portugal) e do Mundo, à luz do controlo e da censura na escolha dos ‘papeis e estórias’ apresentados nos mesmos, de acordo com a conjuntura da época.
E as ‘notícias’ chegavam através da recepção via morse dos textos e alinhamentos enviados da capital portuguesa, recebidos e descodificados pelo saudoso Francisco Tavares d’Almeida (Chico Escuta) … e lidos depois pelos locutores da Rádio Barlavento. Na sequência da tomada da Rádio Barlavento e consequente instituição da Rádio Voz de S.Vicente, aconteceu uma mini-revolução em termos de informação e programação – estes agora virados para a terra e pelo nosso continente.
Focalizando agora os ouvintes dessa estação emissora, pode-se dizer que a audiência tinha como único limite o custo dos receptores de rádio que eram rádios a válvula, raros e caros… nem todos podiam dispôr em suas casas… pelo que muita gente escutava a rádio à janela de vizinhos ou em lugares públicos - de que se destaca a ‘corneta’ da Praça Nova - no Mindelo. Estava-se já na altura no que se pode chamar de ‘anos de ouro’ da rádio em Cabo Verde. Todos se interessavam ou estavam mesmo ‘enfeitiçados’ pela caixinha que falava e tocava.
Desnecessário será então referir do profissionalismo, organização, seriedade dessa estação emissora – não obstante ser uma rádio amadora – com gente a trabalhar em regime de ‘part-time’.
KRIOL RÁDIO: Qual a comparação com a rádio de hoje?
A comparação maior que se pode fazer em relação à rádio de hoje… resume-se neste antagonismo: por um lado, uma rádio amadora com cariz profissional; versus uma rádio profissional com cariz amador. Salvaguardando, com certeza, as devidas proporções e conjunturas, porque na realidade não são situações nem organizações comparáveis. Oito horas de emissão por dia – divididas por três períodos… versus 24 horas/dia; uma pequena equipa de amadores a laborar nas horas de lazer… versus uma equipa bem grande de profissionais, na sua maioria com formação específica e superior na matéria;
Já em termos técnicos e de equipamentos… a diferença é abismal, tanto em meios humanos como em meios técnicos. No entanto, é de realçar que os meios para a manutenção e renovação não progrediram de acordo com a estrutura. Ontem como hoje, continuam a depender e muito, da conjugação de esforços externos à estação sobretudo em tempos de penúria, e mediante a convocação de todos os deuses… Nunca me esqueço do tempo em que – nas emissões - se anunciava uma determinada peça ou programa, fechava-se rapidamente o microfone para se poder dar o competente ‘soco/play’ no gravador para se poder ter de seguida a entrada do RM ou gravação do programa ou spot.
E isto diz tudo em relação a meios. Há que reconhecer que se registou uma evolução extraordinária a nível global na rádio pública deste país. Mas não como ignorar que ainda hoje há sectores que têm muito a aprender com a prática da rádio d’outrora. Sobretudo na organização, seriedade, entrega… em resumo no profissionalismo. Há coisas que continuam a acontecer hoje mas que não são mais admissíveis.
KRIOL RÁDIO: Como profissional com mais de 30 anos de actividade, qual a tua opinião sobre a rádio que se faz hoje em Cabo Verde (a rádio de serviço publico e as outras que estão no mercado)?
Temos hoje uma rádio pública, após um período bom e de crescente qualidade, estagnada há pelo menos uns dez anos. Digo isto porque a minha experiência mo diz, e foi mostrando ao longo dos anos que a Rádio Nacional evoluiu a reboque e acompanhando a própria vida do país. Cumpriu sempre nos tempos ‘especiais’ como é o caso do período de transição para a Independência e nos primeiros anos da construção deste país, exercendo um papel fundamental na conscientização deste povo e sobretudo no despertar para realidade sócio-política das ilhas.
Ajudou e cumpriu nos tempos da criação do país com o redescobrir da nossa identidade e cultura nacionais… e mesmo no montar das estruturas todas do novel Estado. Foi ajudando, e mesmo em certos momentos, empurrando (facilitando) … estamos a pensar nos tempos de partido único. Mais tarde, voltou a cumprir e ter papel de destaque na instauração do multi-partidarismo, e continua – sobretudo em momentos chave como os das eleições – a dar o seu quinhão para o desenvolvimento das ilhas. Mas posso dizer que há já bons anos que estamos em momento crucial – hesitantes – à espera de dar o necessário passo (salto) em frente… que teima em não acontecer.
A Rádio Nacional precisa tornar-se mais profissional, mais da Nação e assumindo equidistância dos partidos, especialmente os do poder. Em suma, a RN precisa emancipar-se (através da assinatura de contratos-programa de serviço público) e ter uma agenda própria, de acordo com os desígnios e exigências da Nação, tanto em termos de Informação como de Programação. No sentido de uma maior proximidade em relação às populações de todos os cantos do país. Uma informação e uma programação ao serviço do desenvolvimento das gentes das ilhas – e não de interesses pessoais, de poderes económicos e partidários, conjunturais e mais a ver com estratégias de poder.
A Rádio de Cabo Verde precisa passar a ser, através de uma decisão firme e um investimento programado de acordo com uma estratégia sábia e científica, uma Estação Profissional de Rádio Pública. Com os contratos-programa normalizados e normatizados a serem cumpridos na íntegra. Cumprindo com o seu papel de órgão estatal de informação e formação, com programas que ajudem a enformar a sociedade civil desejada que, por sua vez, irá criar uma nova mentalidade de participação na vida pública do país e na produção de mais valias para o tal Cabo Verde novo que todos almejamos e merecemos.
Quanto às outras rádios, infelizmente, nota-se a mesma superficialidade em relação aos problemas do país, e uma atenção quase que exclusiva à passagem de música comercial, e com uma programação sem outro objectivo que não seja o puro divertimento.
KRIOL RÁDIO: Na tua opinião, quais os grandes desafios que se colocam à rádio que se faz hoje em Cabo Verde?
O já mencionado desafio da profissionalização no verdadeiro sentido da palavra, dando a devida atenção às produções factual, cultural e educacional, com a eficiência exigida num país de parcos recursos.
Resumindo, a montagem de redacções a funcionar em pleno, com vida e agenda próprias… alimentadas pelo ritmo de desenvolvimento e pelos desafios do país. Criar a capacidade de emitir em directo, regularmente, em todo e qualquer ponto do país. Tratar de todos os ângulos o sem número de preocupações e problemas do dia-a-dia das populações – dar vez e voz à Nação Caboverdiana.
KRIOL RÁDIO: Se tivesses que dar algum conselho aos jovens que estão a iniciar funções na rádio, o que é lhes dirias?
Antes de mais gostaria de dizer isto: Ao futuro da Rádio Pública se deve dar muito mais atenção, com a definição de um perfil global do homem de rádio. Desde a inscrição nos RH’s até ao final de um estágio específico. Porque se nota que Cabo Verde já teve, em períodos circunscritos, o que se pode chamar de ‘anos de ouro da rádio’. É preciso cuidar da passagem de testemunho, sem a perda de valores, de qualidade.
E aos jovens que se iniciam na carreira de jornalistas de rádio, chamamos a atenção para a necessidade de ‘trabalhar a língua’, trabalhar a voz, a dicção, sem esquecer a escrita/redacção específica para Rádio, essa tal escrita quase que falada – que infelizmente parece estar a perder-se irremediávelmente. Digo isto porque me parece que está visível para todos a perda de qualidade nesse campo.
E, para terminar, peço aos jovens radialistas que sejam exigentes consigo próprios, que estudem sempre, que aprendam no seu dia-a-dia, que estejam atentos e ligados à sociedade para a qual trabalham.
KriolRádio