quarta-feira, outubro 17, 2012

Pau que nasce torto...


Diz o povo na sua insondável sabedoria que “há males que vêm por bem”. A crise que se abateu sobre a RTC é motivo bastante para se colocar, definitivamente, a questão do serviço público de rádio e televisão no centro das prioridades. Não me refiro a debates estéreis e nem tão-pouco a fóruns pomposos, cujos resultados, na maior parte das vezes, são remetidos a um canto esconso de uma qualquer gaveta. Estou a falar de uma ampla e profunda reestruturação do operador público, que torne mais eficiente a organização, reduzindo os custos e aumentando a produtividade. Isso só será possível através de uma gestão e administração modernas, assentes numa contabilidade industrial, em planos de curto e médio prazo e sujeitas a um apertado controlo de gestão. 

Não dispor de liquidez para cumprir as obrigações legais para com os trabalhadores, só prova que a RTC está à beira de uma tripla crise: de identidade, de funcionamento e de financiamento. Urge pois clarificar a missão de serviço público, reformar a sua forma de governo, de gestão e de financiamento. 

José António dos Reis, um dos responsáveis pela criação da RTC, considerava em 2007 que a empresa foi formatada para funcionar com uma estrutura de custo que lhe permitisse investir nas infra-estruturas e nos equipamentos. O ex-ministro da tutela da comunicação social recordava que muitas promessas feitas no acto da criação da Rádio Televisão Cabo-Verdiana, em 1997, não foram cumpridas. Cita à laia de exemplo: “a assinatura de um contrato de prestação de serviço público que reflectisse a exigência de uma programação de qualidade, a par de uma adequada indemnização compensatória; um novo edifício para a televisão, com outras condições de trabalho e mais condizente com a missão que se atribui à RTC; uma gestão rigorosa, baseada em objectivos precisos, quer em termos económico-financeiros, quer em termos de valorização de recursos humanos; desenvolvimento de comportamento empresarial com enfoque para a cultura de resultados” (2007).

Ou seja, o próprio Estado tem negligenciado o imperativo constitucional que o obriga a assegurar “a existência e o funcionamento do serviço público de radiodifusão e televisão” (art. 60º, nº 9). Trata-se de uma garantia permanente aos cidadãos, às suas organizações e às mais variadas instituições, de que o pluralismo, a diversidade informativa e a cobertura da realidade e das iniciativas das comunidades, em todo o país e na diáspora, são assegurados. Por isso, não se entende como é que uma dimensão tão importante para o reforço da cidadania e da democracia esteja arredada do discurso que hodierno se faz da reforma do Estado.

Importa esclarecer, antes de mais, que a questão do financiamento não se esgota na arrecadação de verbas suficientes para o desenvolvimento das actividades da rádio e da televisão. A origem desses montantes, a sua dimensão e as diversas modalidades de que se reveste, podendo condicionar a independência do operador e o tipo de programação, são dimensões relevantes que não podem ser menosprezadas na discussão desta matéria. 

A RTC adoptou desde o início um modelo de financiamento misto. Recebe mensalmente do Estado um subsídio de indemnização compensatória de cerca de 4 mil e 100 mil escudos; receitas publicitárias; e o montante da taxa de rádio e televisão cobrada juntamente com a factura da electricidade e água, em torno de 20 mil contos mensais. Conclui-se que mais de 2/3 das receitas totais da RTC (taxa e fundos públicos) provêm da contribuição dos cidadãos. Este modelo está em linha com o que se passa em países como Finlândia, Noruega, Dinamarca, Suécia, Republica Checa, Alemanha, Reino Unido, Roménia, Suíça, Bulgária, Portugal e Hungria.  

Em princípio, a diversidade de origem das fontes de financiamento tende a favorecer a independência do operador público, porquanto minimiza os riscos decorrentes da vinculação às receitas de uma única fonte. A experiência europeia, onde nasceu o SPRT, demonstra o quão imprescindível é o Estado assegurar um quadro seguro, previsível, apropriado, de preferência plurianual, aos operadores.

Desde que surgiu a RTC, há 15 anos, a contribuição do Estado, pelo menos sob a forma de indemnização compensatória, mantém-se inalterada, estando hoje aquém das necessidades de uma televisão que saltou das seis para as dezoito horas de emissão diárias; de uma rádio que emite em dois canais e de um portal online. Isso para não falar do aumento exponencial de recursos humanos e dos investimentos necessários para a prossecução das actividades da “concessionária”.

A taxa, principal fonte de financiamento da RTC, corre sérios riscos de vir a desaparecer. Não obstante a sua actualização estar indexada à inflação anual, o Governo contribuiu para a evasão que se assiste ao pagamento desse “imposto” ao aprovar a lei de protecção dos direitos especiais dos consumidores que tem servido de amparo a quem queira furtar-se a essa comparticipação, sem ter que provar que não usufrui do serviço público de rádio e televisão. A hemorragia dessa fonte de financiamento é grande e, caso não for estancada, o Estado, mais tarde ou mais cedo, terá que compensar a RTC pela perda de receitas.

Do ponto de vista de gestão, é altura de se ter uma liderança mais sintonizada com a missão da empresa, assente na produção e difusão de conteúdos de interesse público. Há que apostar na responsabilidade e na avaliação. Tratando-se de uma empresa que gere dinheiros públicos, é imperioso que a sua gestão seja eficiente e transparente, que os cidadãos conheçam a utilização que se faz do seu dinheiro. Não basta apresentar os relatórios de actividades e contas ao Governo. É imperioso publicitá-los. As reformas inadiáveis decorrentes de um novo estilo de gestão só se materializarão no âmbito de um contrato de concessão e de uma lei de reestruturação financeira. Infelizmente essas medidas estruturais foram relegadas calendas crioulas.