quarta-feira, janeiro 06, 2010

Homenagem a um Jornalista



Uma colectânea de vários escritos do malogrado jornalista Manuel Delgado (Santo Antão, 1949 – Praia, 2007) já está disponível nas livrarias, após lançamento na última semana de Dezembro, mês em que, caso estivesse vivo, o jornalista completaria 60 anos.
A colectânea de 411 textos de Manuel Delgado a jornalista Glaúcia Nogueira, responsável pela organização, denominou Rabidantibus, recorrendo ao título de um artigo de Delgado., publicado na revista Mujer em 1984, em que o autor fala da a sua admiração pelas rabidantes. Admirador declarado da pena de Manuel Delgado coube ao investigador e antigo ministro da Educação, Corsino Tolentino, fazer a apresentação da obra, dia 22 de Dezembro, na Cidade da Praia.

É pelo conteúdo do texto de Corsino Tolentino que propomos perceber os escritos de Manuel Delgado que vão desde da política à cultura, da economia às relações internacionais:


Este encontro com De Rabidantibus (Colectânea 1975-2006) é uma homenagem a Manuel Delgado, 60 anos depois do seu nascimento, a 22 de Dezembro de 1949.

Na verdade, este livro é a realização de um projecto. Mas é o próprio Manuel Delgado que inicia o texto Cretcheu más sabi ê quel quê di meu, sobre o trigésimo aniversário da independência nacional, com este explícito bem à sua maneira: “é bom comemorar sobretudo quando há o que comemorar, porque comemorar é lembrar com júbilo” e no caso concreto, “é festa da memória e da identidade” (p. 426).


Também apetece-me acrescentar a relevância deste livro como fonte de informação sobre a acção política do Autor e como fonte histórica, necessária à compreensão dos processos, personagens e factos que moldaram as três décadas demarcadas pela escrita, entram na definição do presente colectivo e participam no desenho do nosso futuro comum. Por outras palavras, entendo que temos nas mãos uma vida e uma obra com valor jornalístico, político, histórico, literário e filosófico. Se exagerar, farei como o Autor fez várias vezes, darei a mão à palmatória.
De político de circunstância a jornalista de referência

E enquanto esperamos o que virá da Clara e do Neftali, o primogénito, que falarão pela voz da Lia, sirvo-me destes empréstimos familiares do António Pedro e da Glaucia para justificar a minha recomendação de leitura deste calhamaço feito de textos curtos, densos e directos, ocupando cada um, em média, pouco mais de uma página.

Pois bem, afirmei que estamos na Biblioteca Nacional para evidenciar a acção do Manuel Delgado, a qual é, no nosso entender, merecedora de admiração e reconhecimento, pelo efeito que ela tem na conduta pessoal e profissional de um grande número de pessoas e, provavelmente, terá nas gerações futuras.

Porquê uma referência jornalística? Porque entre o analfabetismo de muitos, o conhecimento enciclopédico de alguns e a descontinuidade fragmentada da cultura electrónica, característica do tempo presente, Manuel Delgado ouviu a chamada de atenção de Neil Postman para o facto de no nosso universo existir cada vez mais informação e cada vez menos sentido, prestou atenção a tempo de optar por um caminho próprio entre o real e o virtual, sem perder o pé.

Jornalista firme, de largos horizontes e arriscadas apostas na imprensa cabo-verdiana dos primeiros tempos da República e em Portugal, o fundador do primeiro jornal exclusivamente electrónico de Cabo Verde (Paralelo 14) foi também um homem de rádio, lembrem-se do Debate Africano, da RDP-África.

Tendo aprendido cedo a lição de Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, e de Funes, de Jorge Luís Borges, Manuel Delgado escapou ao deslumbramento provocado pelo excesso de exposição à luz e raramente terá misturado alhos com bugalhos. Como sabem, à semelhança do que tinha acontecido a Prometeu, Victor Frankenstein caiu do paraíso por ter tentado criar a vida a partir da matéria, tendo como castigo um monstro incontrolável e Maurício Funes, apesar de dotado de uma memória prodigiosa, encontra-se perdido no hiper texto dos mass media: fenómeno da época moderna, incapaz de extrair qualquer sentido do caos da informação torrencial (p. 21).


Pelo contrário, os textos de natureza jornalística de Manuel Delgado, a maioria dos 411 que compõem este volume – alguns inéditos incluídos – têm uma estrutura permanente: o título, a introdução e, por vezes, o lead – uma contextualização sumária – informam o leitor do que interessa ao Autor. Em seguida, o corpo de factos, argumentos e, em certos casos, a justificação da falta destes explica a informação e lhe dá sentido. Em geral, uma conclusão em forma de convite à reflexão fecha a escrita.

Esta é a regra e as notáveis entrevistas, entre as quais O Meu Amigo Comandante (p. 352), Navegações (p. 217), Alfinete (253) e um texto romanceado entre os inéditos das últimas páginas são excepções.

Distinguiu-se no cumprimento da tarefa de relacionar, organizar e processar dados de quotidianos complexos, sempre ao serviço do que ele considerava caminho entre caminhos da verdade, da liberdade e da justiça, a qual, em seu entender, nunca existiria bastante sem a coragem de informar, decidir e agir na hora com conhecimento de causa. Por conseguinte, é justo afirmar que Manuel Delgado fez escola e é referência no jornalismo cabo-verdiano e em língua portuguesa.

Mas praticou o jornalismo no contexto da libertação nacional e da construção do Estado e do Poder Democrático. Foi político antes de ser jornalista e nunca mais deixou de o ser. Mas terá conseguido conciliar estes dois campos de acção, a política e a informação, que se excluem, para se complementarem na democratização da sociedade?

Se, simplificando, o objecto da Política for a organização, a administração e a direcção das nações e a Informação significar essencialmente a arte de processar e difundir dados para provocar uma modificação no estado do conhecimento e na atitude colectiva, ambas são necessárias e compatíveis.

Textos como Informação, Ponto & Vírgula, Espaço de Criação, Ilhéu, A outra África e Europa e África no ano 2000 são exemplos dessa compatibilidade necessária. Por outro lado, são numerosas em Manuel Delgado as referências e polémicas relacionadas com a construção do Estado de Direito, a Democracia e a Gestão eficiente das expectativas e dos recursos de Cabo Verde, antes de a boa governação ser moda nos sentados dos workshops de ontem e seminários de socialização de hoje.

Sem dúvida, fonte histórica

Com esperança na concordância dos historiadores, fomos sugerindo que De Rabidantibus tem valor de fonte histórica. Mas, terá mesmo? Se História é, como a entendo, a ciência que estuda o ser humano no tempo, os artigos, as entrevistas, a polémica, a ironia, o sarcasmo e os neologismos do Manuel Delgado serão indispensáveis à explicação de Cabo Verde no período de 1975 – 2006.

A obra também fornecerá pistas interessantes a quem procurar compreender a natureza e a evolução das relações internacionais, em particular entre os Estados resultantes da queda do império português.

Manuel Delgado encarou a explicação da Histórica de Cabo Verde, dos Cinco (Estados Africanos de Língua Portuguesa), da África contemporânea e do Mundo em mudança acelerada a partir dos anos 80 do século XX como uma missão que até hoje ninguém cumpriu com igual garra.


Lição a não perder, fazia como Hannah Arendt e os poetas sugerem: contava a História para envolver as pessoas na construção do próprio destino. Manuel Delgado é fonte histórica, sim.

Valor literário escrito e inscrito para se ver depois …

E agora vem o valor literário do livro. Melhor dizendo, virá. É que prevendo esta situação, tomei a precaução de sugerir aos meus primos que convidassem o meu xará Fortes, para mim, um dos três apresentadores naturais deste livro, pelo talento, o humor, a obra e a admiração que o Manuel inscreveu em vários dos seus textos.

Assim se fez, o Fortes foi convidado mas não pôde comparecer, vos saúda e recomenda que falemos da literatura na obra de Manuel Delgado numa próxima ocasião. Está bem, digo eu, se vamos falar é porque existe e se existe pode esperar. Fica escrito e inscrito para se ver!

A filosofia além do estado oficial dos seres e dos saberes …


E onde está o valor filosófico? Responder a esta pergunta obriga a observar separadamente e em retrospectiva, para os excluir, o argumento que transforma o Autor num jornalista de referência: a capacidade extraordinária de analisar e ordenar factos, personagens e acontecimentos para os apresentar com sentido e coerência; os atributos que conferem à obra o estatuto de fonte histórica: a necessidade objectiva de incluir o livro na lista dos documentos que a sociedade e a academia classificarem como fontes; por fim, o que fez do Manuel Delgado um político jornalista.

Mas o problema não fica resolvido com a simples separação de funções e circunstâncias, porque não basta dizer qualquer coisa como isto: tudo o que não justificar o valor jornalístico, político ou histórico e procurar a verdade, será de interesse filosófico. Não, porque já o vimos, a procura da verdade não é exclusiva do filósofo, o qual tem a missão de explicar teoricamente os acontecimentos e os factos do quotidiano. Ora, em textos sobre a Cultura, a Ética, a Religião, a Política e o Estado, Manuel Delgado revelou talento e coerência além do estado oficial dos seres e saberes.


Com a ajuda de Michel Foucault, o que faz de Manuel Delgado um filósofo é a sua arte de sacudir as familiaridades do nosso pensamento, pensamento que tem a nossa idade, a nossa geografia e o nosso conforto, abalando as superfícies ordenadas e inquietando a nossa prática do tempo que passa. Manuel Delgado é o filósofo do desconcerto criativo.

Mas, o que justificará a leitura?

Adiante, admitindo que os argumentos apresentados são válidos, o que realmente recomenda a leitura de Manuel Delgado?

O universo dos destinatários da minha recomendação inclui os cidadãos nacionais e estrangeiros que queiram saber como se ganhou uma bandeira e como se constrói um Estado de Direito e a Democracia nestas ilhas de parcos recursos naturais.

Em particular, a recomendação é endereçada aos dirigentes e pretendentes, pela simples razão de não ser possível dirigir com eficácia e justiça sem conhecer.


Uma segunda categoria de destinatários é a dos professores e estudantes interessados na compreensão do que aconteceu de fundamental neste país, entre 1975 e 2006.

Outro motivo é o exemplo de verticalidade e coragem que permitem o comprometimento patriótico, a independência intelectual e a eficácia na identificação e defesa da causa pública.

Poder-se-á acusar-me de exagero e não será difícil obter razão neste país onde deixamos as filas dianteiras das salas de conferência vazias, para não sermos suspeitos de arrogância ou de querer dar nas vistas de quem manda. Tenho consciência deste risco, assim como do perigo de eu me enganar, mas sei também que é pelo erro inevitável que avançamos.

Será necessário afirmar que não recomendo o Manuel Delgado como dogma, mas tão-somente como uma referência a comparar com outras, como o próprio fazia, através da análise, comparação e criação de conhecimento? Não.


Teria agora algum valor condenar o Manuel Delgado por não ter cuidado bastante de si e ter-nos privado e ao país do muito mais que teria podido dar? Também não.

Porém, uma coisa é certa: Manuel Delgado fez crescer o património nacional. É o que realmente interessa. Por isso, vamos reter o seu exemplo de verticalidade, comprometimento e independência pessoal e intelectual para que a defesa do bem público e dos interesses privados legítimos seja eficaz.


De Rabidantibus é livro para se ir lendo, página a página, com gozo e proveito. Fazendo-o, alguns leitores descobrirão que a Glaucia e sua equipa fizeram excelente trabalho e que, apesar disso, muitos escritos andam por aí. Que os enviem para a segunda edição!
Terminemos com júbilo, até porque hoje é dia da inauguração do aeroporto internacional de São Pedro, São Vicente, e há festa no Mindelo.

Praia, 22 de Dezembro de 2009

Corsino Tolentino





segunda-feira, janeiro 04, 2010

OS DIAS DA RÁDIO II


Acho oportuno apresentar o meu ponto de vista sobre a interpretação que uma vez ou outra se dá sobre o facto de as estações emissoras dessa época serem privadas, apresentando isso, alguns, até como prova de uma liberdade de expressão no Estado Novo, o que, à primeira vista, parece impensável.

Digo que isso não é prova nenhuma de liberdade de expressão, pois, como asseveram muitos estudiosos da radiodifusão em Portugal, havia um ligeiro abrandamento do controlo e da censura das emissões da rádio em relação à imprensa escrita. Para já, há uma razão clara para isso: a “palavra dita voa, desaparece, enquanto que a palavra escrita fica para sempre”. É natural que quem queira controlar a liberdade de expressão incida mais sobre a imprensa escrita. Também os dirigentes da rádio não seriam pessoas subversivas.

Por outro lado, havia um controlo bastante apertado (…) posso explicar-vos como é que se fazia o noticiário. Eu fui uma das pessoas que mais se aproximou do jornalismo radiofónico. O noticiário era constituído por várias secções. Havia o noticiário local, o da província, o da metrópole, o do ultramar e o noticiário do estrangeiro.

O noticiário da província era enviado pelo Centro de Informação e Turismo na Praia, em forma de telegrama. Portanto, já vinha composto. Os outros noticiários eram transmitidos por morse pela Press Lusitânia, uma agência de notícias ligada ao Governo português, ao Estado Novo, e as notícias eram transmitidas já feitas. Portanto, não se podia mexer nelas.

O nosso trabalho era transformar a linguagem telegráfica em linguagem corrente, colocando as pontuações, os quês, os dês, quando havia falha, tentando ver, mas com muito cuidado, qual a palavra que faltava, para não deturpar as coisas. Ou seja, as coisas vinham de tal maneira controladas que não havia meio de se pensar em fazer qualquer coisa que fosse contra a ordem do Estado Novo.

Onde havia uma certa liberdade era no noticiário local, mas para já era escasso. Normalmente recaía sobre aquilo que se chama em linguagem jornalística fait divers, as iniciativas sociais, digamos, as actividades do Governador e sua comitiva. E nem sequer havia um jornalista para cobrir o noticiário local. Eram os sócios do Grémio, sobretudo os mais jovens, que ao ter conhecimento de um evento, redigiam a notícia e levavam para a rádio. Lembro-me do Jorge Pedro Barbosa, filho do poeta Jorge Barbosa, que era um dos principais fornecedores do noticiário local, mas havia outros. Os outros programas eram todos enviados para a censura no dia seguinte. Era uma censura à posteriori, mas de qualquer forma, ninguém se atrevia…

Ora, numa análise objectiva da estrutura de programação do Rádio Clube de Cabo Verde, em 1951, com apenas uma hora e meia de emissão, constata-se: abertura com a Orquestra de luís Rovira, valsas, noticiário, trechos de óperas, encerramento. Durante a semana, a estrutura mantinha-se igual, apenas mudando a designação dos programas.

Os programas informativos ocupavam 30% de emissão e os musicais 65%, outros programas falados preenchiam a restante programação. A cultura, especialmente a literatura, tinha 2,3%, o humor, 3%, a música, essencialmente internacional, 90%, com predominância da portuguesa, europeia e americana, sendo apenas 8% para a música erudita. A música cabo-verdiana preenchia os restantes 10% da programação musical.

Já em 1960, a programação tinha a seguinte composição: abertura, resumo noticioso, Lembranças pela Rádio 1ª parte, Lembranças pela Rádio 2ª parte, resumo do Boletim Oficial, noticiário, música portuguesa, encerramento. Ao longo da semana introduziam-se outros programas que revelavam já alguma melhoria em termos de conteúdos: Parada Desportiva; Revista de Imprensa; Grandes Figuras da Música; Cancioneiro Panorama Cabo-Verdiano; Teatro Radiofónico, Rádio Jornal.

Uma análise segura e objectiva da grelha de programas da rádio Barlavento torna-se muito difícil, pelo erro grave que se cometeu aquando da passagem da Rádio Voz de S. Vicente do edifício da Praça Nova, para as actuais instalações, nos anos 80, de eliminar quase todos os arquivos, tanto da RB como da RVSV. Esses arquivos que continham toda a história da rádio desapareceram… e eram mantidos rigorosamente ao longo de todo esse tempo.

Creio, no entanto, poder afirmar que durante o seu melhor período, que decorre desde a sua fundação, até meados da década de 60, a Rádio Barlavento conseguiu manter uma programação mais rica, diversificada e interessante do que a sua congénere na Praia. Dando mais atenção à cultura cabo-verdiana e à cultura em geral, à informação, com os constrangimentos já apontados, sem descurar o entretenimento. Difundiram-se programas de bom nível e que atingiram grande popularidade.

Cito de memória alguns: Revista Sonora, Jornal de Actualidade, com grande incidência na cultura e a colaboração de muitos intelectuais, que era feito pelo director, Dr. Aníbal Lopes da Silva; Mosaicos Mindelenses, apresentado por Sérgio Frusoni; Miradouro, crónicas do escritor António Aurélio Gonçalves, o programa desportivo Golo e, especialmente, as célebres, corajosas e saborosas peças de Nho Djunga, de crítica satírica, algumas numa linguagem mais séria, consistindo em crónicas, cartas e diálogos, como a célebre “A Roupa do Pipi” e o “Bom Senso”.

Entretanto, o amadorismo das pessoas que faziam rádio em qualquer das estações emissoras é quase total, recebendo apenas uma gratificação, pois estudavam e exerciam diversas profissões. Não havia jornalistas da rádio, mas sim locutores, que liam as notícias e os textos dos programas, embora alguns realizassem pontualmente reportagens sobre acontecimentos importantes e alguns programas. Diga-se de passagem que a maior parte desses locutores e locutoras era de excelente qualidade e praticavam a rádio com prazer. O mesmo pode dizer-se dos técnicos e do restante pessoal.

Recordemos que após um período de alguma imobilidade, até finais dos anos 50, entra-se num período de largos acontecimentos mundiais, de natureza tecnológica, social, política, e cultural. A corrida ao espaço, a vitória de Castro em Cuba, as independências africanas (já estamos nos anos 60 e 70), os sangrentos conflitos no Congo e no Biafra, a luta contra o Aparteith, a guerra fria e a crise dos mísseis em Cuba, a intensificação da guerra no Vietnam, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos da América, os assassinatos de Kennedy e Martin Luther King, a guerra
Israelo-Arabe , o Maio de 68 em Paris, a revolução na moda (mini-saia) …

Toda a essa efervescência tem enorme repercussão nos meios de comunicação em todo o mundo mas, em Cabo Verde, a sua difusão é estritamente controlada. Ao mesmo tempo, na metrópole e nas colónias aumenta a censura e a vigilância da PIDE que se instalara em Cabo Verde logo nos princípios da década de 60, o que, no meu entender, contribuiu par uma menor qualidade na prestação das emissoras. Parece-me que nem a efémera primavera de Marcelo Caetano se fez sentir nas colónias. No entanto, o número de receptores e de ouvintes cresce muito devido a chegada a Cabo Verde dos aparelhos a transístor a preços baixos nos inícios dos anos 60.

Uma breve referência à Rádio Libertação que iniciou as suas emissões em 1967 em solo guineense, mas era orientada para a Guiné e Cabo Verde como instrumento importante para a luta de libertação. Dizia Amílcar Cabral que a emissora tinha “coragem, a potência e a eficácia de vários corpos do exército”, Isso mostra, mais uma vez, a importância da rádio em conflitos armados.

Vejamos agora os programas de um dia e de uma semana na Rádio Barlavento em 1974. (…) Literatura, Ritmos, Resumo Noticioso, Vozes Femininos e fecho; no segundo período: Disco do Ouvinte, Noticiário, Música Portuguesa, Cartas de Ouvintes, Novo Mundo, Publicidade, Encontro às Dez, Variedades, fecho.

Em termos percentuais: a informação tinha 10% de toda a emissão; programas puramente musicais, 33%, um programa de variedades que era de música e palavras, diariamente transmitido durante duas horas, abrangia 35%, outros programas falados, 12%; o desporto detinha um 1%, a cultura 2%, a religião 1%, a publicidade 6%, um programa militar, 1%, ensino da língua inglesa, 2%. Apenas 22% dos programas musicais era de música cabo-verdiana. Não se transmitia música clássica.

De salientar que ao longo de todo o percurso da radiodifusão no mundo aqui resumido, mantém-se sempre um domínio informativo, cultural e tecnológico dos países mais avançados em relação aos subdesenvolvidos. Este domínio exercido, sobretudo através das grandes agências internacionais, é o corolário e o prolongamento de uma dimensão politica e económica.

Desde os princípios da década de 70, os países em desenvolvimento não-alinhados esforçam-se por criar uma ordem internacional de informação que pusesse termo a esse domínio. Obviamente, só depois da independência, Cabo Verde se junta a esses esforços que hoje estão ultrapassados por novos conceitos e tecnologias de comunicação e informação.

Outro aspecto a referir é a concorrência entre a rádio e a televisão que ganhou maior dimensão no mundo a partir da década de 60, apresentando cada um desses meios os seus trunfos e as suas desvantagens. Em Cabo Verde esse confronto só se inicia em meados dos anos 80. Mas actualmente exige mais atenção e estratégia da rádio, dado o inegável poder sugestivo da imagem televisiva. Quanto à imprensa escrita, creio que não constituiu adversário à altura da rádio, pela irregularidade dos jornais, à excepção do Boletim de Propaganda, à sua fraca tiragem e difusão e à percentagem elevada de analfabetismo.

Termino com a tomada da Rádio Barlavento e a sua transformação na Rádio Voz de S. Vicente, em 9 de Dezembro de 1974, episódio marcante da luta política sujeito a interpretações divergentes, que rompeu com força depois da Revolução de Abril e que mais uma vez evidenciou a importância da rádio, particularmente, na luta politica.