terça-feira, abril 02, 2013

Quem sabe faz ao vivo


Entre avanços e recuos, a Televisão   Experimental de Cabo Verde viria a ser transformada, em de Junho de 1990, na Televisão Nacional de Cabo Verde. A passagem da TEVEC para a TNCV tinha subjacente a ideia de transformar a televisão num órgão de comunicação social de alcance nacional, cobrindo todas as ilhas e que pudesse ser vista também por todos os cabo-verdianos. Este era, digamos, o objectivo central da política de desenvolvimento da televisão pública, para além da pertinência de se introduzir mudanças ao nível da programação,  reforçando a aposta na produção nacional.

Este acontecimento não passa despercebido, nem aos cidadãos nem à imprensa. Na sua edição de 16 de Junho, o jornal Tribuna, num artigo intitulado “Adeus TEVEC, Olá TNCV”, constata que “para já mudaram os genéricos e cenários, há pequenas alterações na grelha de programas. Há uma tentativa evidente de melhorar. As apresentadoras, simpáticas, procuram cumprir, introduziu-se a publicidade, fez-se a separação entre dois programas diferentes, anuncia-se a programação do dia.” O quinzenário faz notar, todavia, que a televisão ainda não tinha ultrapassado os desagradáveis problemas técnicos que provocam constantemente falhas na emissão.

Por isso, em jeito de sugestão, pede que se introduza um slide com alguma imagem ou dizeres sempre que haja queda na emissão; que se identifique com legendas as músicas nacionais e os grupos que actuam, situando no tempo e no espaço as suas prestações. Para além de pedir mais séries e cinema de qualidade, enquanto não se produzir programas nacionais (recreativos e culturais), o Tribuna, na sua análise crítica à recém criada TNCV, não pouca  o sector informativo: “Os noticiários é que continuam fracos: sobretudo as matérias do estrangeiro, que veiculam pontos de vista e propaganda dos outros. Há que nacionalizar a informação televisiva nacional, com textos que não sejam meras traduções (más) dos franceses.”

O ex-ministro da Informação e Desporto, David Hopffer Almada, recorda-se do dia em que arrancaram as emissões da renovada TNCV, o que só aconteceu graças a Portugal que, para além de garantir a formação do pessoal,  enviou uma equipa técnica da RTP para apoiar a produção, nesse dia. “Era um dia de festa, mas também de risco. Porque não sabíamos como é que aquilo havia de ser. Era primeira vez que se ia transmitir em directo. A televisão em directo com noticiário em directo, com espectáculos em directo, etc. Foi um risco muito grande, correu mais ou menos bem. Não houve grandes barracas, embora sentíssemos que alguma coisa não estava a correr como queríamos, mas quem estivesse de fora não notaria.”

No plano legislativo, a transformação da TEVEC em TNCV tem como respaldo o decreto-lei nº 42/90 que aprova os estatutos do órgão, revogando os de 1984. Segundo o diploma, o novo operador tinha como obrigação assegurar o serviço público de televisão, garantindo à população uma informação clara e objectiva sobre a actualidade nacional e internacional, nomeadamente nos planos político, cultural, social e económico.  O lastro ideológico mantém-se, o que faz da televisão um instrumento imprescindível na consciencialização dos cidadãos quanto à ingente tarefa colectiva de reconstrução nacional, por forma a reforçar a unidade, a promoção e a defesa da identidade e da cultura cabo-verdianas.

No que se afigurava um grande salto, a televisão desembaraça-se da ossatura experimental e da vocação amadora, condição que, no entanto, lhe permitiu usufruir de apoios técnicos e de formação do pessoal por parte de várias organizações internacionais, missões diplomáticas e televisões estrangeiras, como é o caso da TV Globo, do Brasil, que disponibiliza as suas telenovelas ao gesto simbólico de um dólar. A este propósito, Corsino Fortes, que desempenhou as funções de secretário de Estado, tutela da comunicação social, conta que ao dar conhecimento desta novidade a Pedro Pires, este perguntou-lhe, de imediato, por que é que não deu logo 12 dólares aos brasileiros, pois, assim ficariam com o problema resolvido durante um ano inteiro.

Estava assim aberto o caminho ao profissionalismo, à inovação e à criatividade, pelo menos, assim esperava o Governo e reclamavam os telespectadores. Para trás parecia ter ficado a TEVEC, com um quadro de 43 trabalhadores, distribuídos entre jornalistas, técnicos e administrativos, onde sobressaía uma única  pessoa com formação superior  em Comunicação Social. Os jornalistas tinham em média o ex-sétimo ano dos liceus, enquanto que os técnicos, possuíam o ex-terceiro ano dos liceus  e estágios de superação nos equipamentos que operavam (II Plano Nacional de Desenvolvimento, vol. II, 1986-90).

Não obstante constrangimentos de variada ordem, a jornalista Gunga Tolentino (2009) acredita que se faziam milagres na TEVEC: “fazíamos todo o trabalho de recolha de informação nacional e internacional, tradução, elaboração do texto de acompanhamento das imagens e apresentação. Era um trabalho extenuante, mas sempre primado pela qualidade. Portanto, aquilo que não nos satisfizesse como boa qualidade, não ia para o ar. Preferíamos meter mais música ou conversa de estúdio do que levar um trabalho inacabado ou com informações que não fossem devidamente verificadas. Tínhamos muito cuidado com a legenda, na dublagem e eu acho que é isto que as pessoas se recordam e também pela nossa imagem de apresentação”.

Com a TNCV, as emissões passam a ser diárias, menos a segunda-feira, dia que era aproveitado para a manutenção dos equipamentos. A estação aumenta as horas de difusão e aposta na diversidade dos conteúdos, como forma de responder às expectativas dos cabo-verdianos. O estatuto profissional dos jornalistas, enquadrados e tratados como funcionários públicos desde a independência,  viria a ser alterado, o que permitiu à televisão do Estado contratar várias outras categorias profissionais, indispensáveis ao seu normal funcionamento, como por exemplo, realizadores, produtores, anotadores, operadores de imagem, etc.   

Por essa altura, vários jornalistas acabados de se formar no estrangeiro entram para a Televisão Nacional de Cabo Verde, trazendo um saber-fazer mais qualificado e experiências adquiridas noutras paragens, o que terá contribuído para a melhoria da qualidade da prestação da  TNCV, pese embora constituíssem uma minoria dentro da empresa. Na opinião do ex-administrador, João Correia, “a maior parte do pessoal recrutado não tinha qualificação adequada, e sequer foi submetida  a algum tipo de avaliação. Voltou-se  a cometer o mesmo erro de quando se ampliou o pessoal da TEVEC. Contrataram-se pessoas sem habilitação para a TV, pois não havia grandes exigências em termos de escolaridade. Elas permanecem até hoje na emissora. Isto constitui um obstáculo sério  ao avanço da televisão.” (Olinda, 2000).

Rapidamente, a televisão denota excesso de pessoal, embora a produção nacional continuasse minguada, muito aquém dos investimentos feitos na melhoria das condições técnicas e na capacitação dos recursos humanos, diante da exigência crescente dos telespectadores. Os responsáveis da empresa estavam convictos de que era possível conseguir-se a almejada autonomia financeira, através da exploração eficiente das componentes técnica e humana. As inovações tecnológicas, diziam, iriam permitir explorar uma importante fonte de receitas que era a publicidade. Uma visão rentista do mercado que, diga-se, ainda hoje se mantém, o que coloca a televisão nacional num intrigante dilema: por um lado, é obrigada a prestar um serviço público, que se quer de referência, abrangente e de qualidade e, por outro, sem um modelo de financiamento adequado, é forçada a adoptar um postura comercial agressiva, desvirtuando inclusive a sua missão. Esta situação é, aliás, considerada pelos operadores privados como uma forma de concorrência desleal, uma vez que, sendo a estação pública financeiramente suportada pelo Estado e pelos cidadãos, deviam-se-lhe impor limites na arrecadação de receitas pela via do mercado publicitário.     

A verdade é que, por causa de uma situação financeira frágil, excesso de pessoal e deficiente organização interna, a dívida acumulada da TNCV já ultrapassava, em 1991, os 72 milhões de escudos. Nesse ano, segundo um estudo da Direcção Geral da Comunicação Social (1993), entre salários, remunerações adicionais (subsídios) e horas-extras, a televisão pública desembolsava  a choruda quantia de 29 milhões de escudos, representando 107% das receitas correntes. Acresce que  o subsídio que o Estado concedia à empresa não representava sequer 50% das despesas com o pessoal. Para poder cumprir, minimamente, a missão e saldar as dívidas junto dos fornecedores, que não paravam de subir, a TNCV é obrigada a recorrer à banca. Em breve, tentarei perceber o que tem sido a televisão nacional a partir de 1991 a esta parte. Para já, é tempo de sol, praia e, claro, muito krioljazz.