Em entrevista a Cabo Verde Directo, o
jornalista da RCV não se esconde por detrás de palavras de conveniência ou de
redondilhas. Os critérios seguidos por organizações internacionais para avaliar
a liberdade de imprensa são “abstratos e generalistas”
Cabo Verde Directo - Vários relatórios internacionais têm
sido muito lisonjeiros com Cabo Verde em matéria da liberdade de imprensa, mas
fica a ideia de que não passam de generalidades e são até discutíveis os
critérios de avaliação. Há mesmo liberdade de imprensa em Cabo Verde?
Carlos Santos - Do ponto de vista
formal, da legislação, não duvido de que existe todo um ambiente que propicia o
usufruto da liberdade de imprensa no nosso país. No entanto, não se pode, de
forma lapidar, afirmar que ela é um dado adquirido na paisagem mediática
cabo-verdiana, uma vez que não temos instrumentos internos que nos permitam
aferir nas redacções os ganhos, os limites e os desafios que se colocam ao
exercício de informar. É preciso que tracemos o nosso próprio diagnóstico, que
pode passar por um inquérito ou um relatório da situação da liberdade de
imprensa, sob pena de assumirmos, de forma acrítica, a avaliação feita pela RFS
ou pela Freedom House, cujos critérios de aferição, como se sabe, são abstratos
e generalistas. O único estudo sério sobre esta matéria que conheço resulta da
tese de doutoramento do professor universitário Silvino Lopes Évora, lançado no
ano passado, onde o autor analisa com profundidade a legislação, as medidas de
política para o sector, os investimentos; entrevista mais de meia centena de
jornalistas, gestores dos órgãos, ex-dirigentes políticos, e conclui que
existem factores críticos que condicionam a liberdade de imprensa em Cabo
Verde. O resto são estatísticas.
É que, apesar de ninguém ter dito ainda expressamente que
se sente “pressionado” pelos poderes fácticos instalados, tem-se a sensação de
que parece haver uma espécie de “autocensura”. Ou seja, os jornalistas sabem à
partida o que é “correcto” e “incorrecto” escrever e/ou dizer.
A autocensura continua a ser, diga-se o que se disser, um
sério constrangimento ao normal funcionamento da comunicação social nesta
sociedade em busca da consolidação da democracia. Embora não se conheça a real
dimensão do problema, porque não existem inquéritos aos profissionais dos
media, as rotinas nas redacções e os desabafos de alguns jornalistas, sobretudo
daqueles que ainda não têm muitos anos do ofício, deixam antever que o problema
é grave e não deve ser escamoteado. A causas são muitas, devem ser
identificadas e, imediatamente, debeladas. A fragilidade do nosso mercado,
pouco atractivo a investimentos de privados nas empresas de comunicação social;
o facto de o Estado continuar a ser o grande grupo mediático, sendo
proprietário de uma rádio e televisão nacionais, de uma agência noticiosa e
ainda deter interesses no online; o baixo nível de formação de um bom número de
jornalistas, a que se acresce a falta de especialização; a precariedade
laboral, com destaque para a ausência de contratos de trabalho e salários de miséria;
a não existência de mecanismos transparentes, como o mérito e competência na
escolha dos jornalistas para cargos de chefia na esfera editorial, etc, são, do
meu ponto de vista, alguns dos factores que ajudam a explicar o recurso à
autocensura. Quanto a pressões, elas irão sempre existir, quer por parte dos
poderes políticos, económicos, ou de outra natureza. O importante é o
jornalista não se submeter a elas. É evidente que um jornalista com baixo nível
de preparação técnica e académica ou com vínculo laboral instável, não está em
condições de fazer valer as normas éticas e deontológicas da sua profissão e,
muito menos, de informar “doa a quem doer”.
E há casos, por exemplo, nos canais públicos, mormente na
TCV, em que determinadas figuras da política aparecem duas, três e quatro vezes
no mesmo noticiário. Há alturas em que o espaço televisivo parece o Conselho de
Ministros.
Caso estivesse a funcionar, a Autoridade Reguladora da
Comunicação Social seria obrigada a pronunciar-se, periodicamente, sobre o
pluralismo informativo nos órgãos públicos, mediante análise dos conteúdos
emitidos nos noticiários e nos programas de grande informação, como de resto
constitui obrigação da ARC. Infelizmente por falta de vontade política o sector
mediático caiu num vazio em matéria de regulação, situação, aliás, reconhecida
esta semana pelo Procurador Geral da República.
O facto de o alinhamento dos jornais estar repleto de
notícias de actividades do Governo é, na minha opinião, o resultado de uma
cultura jornalística que privilegia a “agenda institucional” em detrimento das
preocupações, necessidades e expectativas dos cidadãos. Com isto não estou a
defender que se deva banir a cobertura dos actos do governo, desde que o seu
agendamento se submeta ao crivo dos critérios jornalísticos, tendo sempre em
conta o interesse público, e não meras operações de propaganda. Para isso,
torna-se importante que os jornalistas se organizem e comecem a participar na
gestão editorial dos órgãos onde trabalham. É também imperioso que os órgãos
públicos mudem o paradigma de informação - completamente desajustado das
exigências de uma sociedade que se quer democrática -, que mantém ainda um
registo declarativo, para uma lógica de aprofundamento das consequências que os
acontecimentos terão na vida dos cabo-verdianos, dando voz às correntes de
opinião mais relevantes na sociedade, ampliando assim o pluralismo.
E até há o anedótico e recente caso, em que uma ministra
deste governo (Cristina Duarte) sustentou, aludindo a um relatório internacional,
que os jornalistas não deveriam publicar sem autorização do governo. Isto não
será um alerta laranja para a liberdade de imprensa?
Bom, provavelmente a ministra ter-se-á esquecido de que
já não estamos sob o domínio asfixiante do partido único, onde os jornalistas
eram militantes obedientes ao serviço do regime. Ainda bem que Cabo Verde é
hoje um Estado de Direito democrático, onde a prestação de contas e a
transparência na gestão da coisa pública devem (ou pelo menos deviam) nortear a
actuação dos decisores e das instituições. Que se saiba esse relatório do FMI
não constituía segredo de Estado. É por estas e por outras que os jornalistas
cabo-verdianos começam a dar-se conta das inúmeras dificuldades no acesso às
fontes e informação. Ainda tempos uma administração fechada sobre si mesma, no
mais absoluto secretismo, que bastas vezes se furta ao dever de prestar
informações solicitadas pelos jornalistas, sem qualquer fundamentação
plausível. Uma postura que viola de forma flagrante o direito que os cidadãos
têm de ser informados pela administração directa ou indirecta do
Estado.
Aliás, rumores antigos aludem a nomeações de chefias onde
os critérios políticos e o amiguismo se sobrepõem às questões editoriais e ao
sagrado direito público a informação sem nebulosas.
Pois, referi-me há instantes ao facto de não existir
ainda uma cultura de valorização do mérito e da competência técnica na escolha
das pessoas que exercem cargos de chefia na érea editorial. Julgo, e falo dos
órgãos públicos, que é chegado o momento, até para se poder aumentar os níveis
de competição interna, de as nomeações, muitas vezes baseadas na confiança ou
no amiguismo, serem substituídas por concursos internos. Há que romper com este
ciclo pernicioso, desde logo adoptando um novo modelo para a nomeação dos
conselhos de administração das empresas públicas de comunicação social. Não faz
sentido que num sector onde estado é de longe o maior grupo mediático, detendo
mais de 80 por cento dos recursos técnicos, humanos e financeiros; onde o
privado não constitui, não por sua culpa, concorrência nem alternativa aos
operadores públicos; em que se confunde o aumento do número de jornais, rádios,
televisões e online, com o reforço do pluralismo, dizia, não faz sentido que o
governo continue a nomear sozinho os gestores dessas empresas. No caso da RTC,
que, como se diz, se encontra praticamente em falência técnica, a
responsabilidade deve ser assacada ao governo e às pessoas que lá colocou na
gestão. É razoável esperar que um administrador escolhido e nomeado por um
governo para dirigir uma empresa pública vá “brigar” com esse mesmo governo em
defesa dessa empresa? É evidente que não. Mas a cadeia de fragilidades
continua. O conselho, escolhido com base na confiança política, depois escolhe
o director do órgão que, por sua vez, convida os chefes de programação e
Informação, a serem nomeados pelo PCA. Pergunto se já não é altura de, pelo
menos, as chefias de informação e de redacção serem eleitas ou escolhidas pelo
colectivo de jornalistas. A seriedade e a legitimidade começam por aqui.
Salários de miséria, salários em atraso, lógicas de
direcção editorial ao nível das repartições públicas são, também, queixa antiga
de muitos jornalistas da comunicação social pública e privada.
A abertura do mercado ao sector privado, com o surgimento
de mais rádios, mais televisões, jornalistas e online, pôs a nu as fragilidades
do sector. Como se não bastasse a regulação foi ignorada, o que faz com que a
legislação se torne letra morta. Quanto à precariedade laboral, a começar pela
ausência de contratos, salários baixos e ainda por cima com atrasos de mais de
três meses, tenho defendido que o sindicato dos jornalistas não se deve limitar
apenas a denunciar estas situações, deve, antes de mais, negociar com as entidades
patronais as soluções para estes casos; deve accionar o governo, a Direcção
Geral do Trabalho e as demais instituições com responsabilidades na matéria,
inclusive os tribunais e, caso as reivindicações não forem atendidas, mobilizar
os trabalhadores para outras formas de luta. É preciso ter em atenção que a
AJOC deixou de ser uma mera associação para se transformar num sindicato, pelo
que a sua postura deve ser mais reivindicativa, mostrando-se sempre disponível
ao diálogo.
E, por falar em jornalistas, como interpreta o facto de,
em seis camaradas de profissão contactados por Cabo Verde, cinco tenham,
amavelmente declinado o convite para opinarem. Há medo na comunicação social
cabo-verdiana?
Bom, tendo em conta que não conheço as razões evocadas pelos
colegas para declinarem o convite, não posso, como é evidente, afirmar que o
tenham feito por medo. Talvez não tenham querido dar-se ao trabalho de pensar,
reflectir sobre a nossa profissão. Por vezes somos muito críticos em ambientes
informais, mas quando somos chamados a pronunciar-se com maior acuidade sobre
aspectos estruturantes da nossa profissão, remetemo-nos ao silêncio, permitindo
que os políticos tracem sozinhos o nosso destino profissional. Por exemplo,
ainda hoje não entendo como é que permanece no código eleitoral o artigo 105º,
unanimemente considerado inconstitucional. Enfim, uma autêntica lei da rolha.
Como se compreende que não haja ainda, apesar de
contemplada legalmente, uma entidade reguladora para a comunicação social?
Compreende-se perfeitamente uma vez que não existe da
parte do governo e dos partidos políticos com assento parlamentar qualquer
intenção de dotar o país de um conselho regulador funcional e eficaz. Fosse uma
matéria de interesse exclusivo dos partidos, já teriam chegado a um consenso
quanto aos nomes que irão integrar a ARC. Dizer, como disse há dias o ministro
Rui Semedo, que se trata de uma questão da alçada do parlamento e que,
portanto, o governo não deve interferir nessa esfera de decisão, é, no mínimo,
protelar a solução. Estamos a falar de uma entidade central para garantia de um
direito fundamental dos cidadãos, que é o direito à informação, um bem
simbólico no Estado de Direito democrático. Se estiverem interessados em
resolver esta questão, o governo e o partido que o sustenta encontrarão, de
certeza, uma plataforma de entendimento com os partidos da oposição.
E a AJOC, tem estado “em cima” do quotidiano dos
jornalistas? Por exemplo, falou-se há pouco em salários em atraso, mas só há
memória de a associação ter intervindo quando se tratou da RCV. Sabe-se que em
"A Semana" há jornalistas a passar dificuldades, a alimentarem-se
precariamente porque a administração do jornal falha reiteradamente com as suas
obrigações, e este parece não ser caso único.
É o que eu disse há instantes, a AJOC tem de começar a
funcionar como um sindicato que é. De facto, uma das críticas que se ouvem dos
jornalistas que trabalham no sector privado é a de que a AJOC só defende os
direitos dos profissionais da RTC. Não estou a dizer que concordo com essa
crítica, de todo o modo, penso que o sindicato deve estender a sua actuação a
todos os media nacionais. Talvez esse desabafo se deva ao facto de a AJOC não
ter conseguido eleger, até hoje, os delegados sindicais nas empresas de comunicação
social, como aliás está consagrado nos estatutos. Se o sindicato tem
desenvolvido ou não acções em defesa dos jornalistas que trabalham no sector
privado, não sei dizer, porquanto não fui informado dessas eventuais
intervenções. O que é facto é que poder e a importância do sindicato devem
fazer-se sentir sempre que a classe necessitar ou seja imprescindível a sua
actuação.
E o que lhe merece dizer sobre a promiscuidade entre
jornalistas-assessores e assessores-jornalistas?
É uma autêntica pouca vergonha. E essas praticas só
demonstram o grau zero de regulação neste sector. Se as leis existem mas não
são cumpridas, então mais vale que sejam revogadas. Assim, vai cada um tratar
da sua vida!
O que falta, mesmo, para Cabo Verde ser – de facto – um
exemplo em termos de liberdade de imprensa?
Costuma-se dizer que a liberdade de imprensa não é uma
dádiva, nem tão pouco uma realidade fechada. É um processo, um ideal, para o
qual lutamos todos os dias, alargando cada vez mais as margens dessa liberdade,
reforçando os ganhos que forem sendo alcançados. Dada a sua centralidade na
paisagem mediática cabo-verdiana, deve-se assegurar à RTC a sua autonomia e
independência em relação aos poderes, como estipula a Constituição da
Republica. Isso passa pela adopção de uma nova modalidade de nomeação dos
conselhos de administração, mais plural e democrática; um novo modelo de
financiamento do serviço público, substancial e previsível, que não o coloque
na dependência do governo e nem a reboque do mercado publicitário; é preciso
que se acabe de vez com a transmissão nos órgãos de serviço público dos
chamados programas e publicidades institucionais, diga-se dos ministérios, que
mais não são do que propaganda do governo, a coberto de compromissos
comerciais. Ora se se permite que um governo compre espaços de antena na rádio
e na televisão públicas, pela via comercial, para divulgar as suas actividades,
quando tem à sua disposição outros canais de comunicação e de visibilidade, é
lícito que também se dê aos partidos da oposição a mesma oportunidade para
propagandear as suas actividades. Estamos perante uma interferência grosseira
na esfera editorial e na liberdade de programação de que gozam os operadores
públicos.
Para que Cabo Verde seja de facto um exemplo em matéria
de liberdade de imprensa, é importante que se ponha a funcionar a ARC; que a
autorregulação também seja assumida pelos jornalistas; que participem mais na
definição da agenda mediática; que haja mais e melhor formação técnica e
académica dos jornalistas, a começar pela especialização; que haja mais
investigação jornalística; que sejam criadas as condições para que os privados
possam competir em pé de igualdade com os órgãos públicos; que o sindicato de
jornalistas seja mais proactivo... à laia de remate final, diria que para que
sejamos campeões da liberdade de imprensa, os jornalistas têm que redescobrir
os fundamentos da sua missão de informar, aproximando-se dos cidadãos,
tornando-se em fiéis “cães de guarda” da democracia.
A RTC anunciou na última quinta-feira, no meio de grandes
parangonas e até com a presença do Primeiro-ministro, o lançamento da TCV
Internacional, mas os trabalhadores da empresa em São Vicente continuam a
queixar-se do abandono a que estão votados e a precariedade dos meios de que
dispõem. Faz sentido avançar com mais um canal, quando não se oferecem
condições dignas de trabalho? Não será tudo mais publicidade enganosa do que
uma mais-valia real?
Penso que a TCV Internacional é, de facto, uma grande
janela que se abre à diáspora que assim poderá acompanhar o pulsar destas
ilhas. Há dias o PCA da RTC, respondendo a esta mesma pergunta disse que a
empresa pode assumir estas duas direcções, ou seja, reforçar a sua presença
junto das comunidades emigradas e melhorar as condições de trabalho e de
emissão a nível interno. Julgo que o grande desafio da TCV Internacional será
na produção de conteúdos nacionais de qualidade que atendam aos interesses dos
nossos emigrantes, mas mais, este canal só faz sentido se permitir que a 11ª
ilha faça ouvir a sua voz no processo de desenvolvimento de Cabo Verde. Temos
uma Nação Global que não conhecemos e a que a TCV Internacional deve dar
visibilidade.