segunda-feira, março 10, 2014

A morte anunciada da ARC

Ainda não consegui perceber muito bem por que razão a presidente da AJOC se mostra tão surpreendida pelo facto de os jornalistas terem sido ignorados na composição da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social. Quem acompanhou com alguma atenção o processo de criação da ARC ter-se-á apercebido que desde o início da constituição dessa entidade, a intenção dos dois maiores partidos políticos foi a de impedir que os jornalistas tivessem uma palavra a dizer no seio do órgão que, em princípio, vai regular a actividade desenvolvida pelos media nacionais. Em abono da verdade, importa ressalvar que a proposta de lei inicialmente submetida ao parlamento pelo Governo destinava dois assentos aos jornalistas, para cuja eleição deveriam sujeitar-se à logica político-partidária (ainda que num quadro parlamentar) que tem marcado a escolha dos membros.

Pelo que retive do calor dos debates, essa ideia de ter os regulados dentro do regulador nunca foi do agrado do maior partido da oposição. No entanto, para o MPD era impensável que do rol de competências da futura Autoridade Reguladora não constasse a de emitir, suspender e revogar licenças de emissão às operadoras de rádio e televisão. Lembro-me de ter ouvido a deputada Eva Marques, na declaração de voto, afirmar que o seu partido tinha votado formalmente o diploma porque reconhecia a importância de uma entidade reguladora independente para o sector da comunicação social, mas que, ainda assim, o partido iria levar uma série de propostas para a comissão especializada para eventuais entendimentos com o partido que sustenta o Governo, o que poderia ditar a votação final.

Desconheço os meandros das negociações havidas nessa tal reunião da comissão especializada, mas julgo que o que terá acontecido foi, basicamente, um conluio entre os dois partidos. Explico-me: o PAICV, que suporta o governo, deixou cair a obrigatoriedade da presença de jornalistas no órgão regulador; o MPD, por seu turno, abdicou da exigência de se dotar o conselho regulador de competências para o licenciamento dos canais de rádio e televisão. Um recuo que, está visto, enfraquece a entidade reguladora, uma vez que esse poder, usado, por vezes, de forma discricionária, ficou nas mãos do Governo, através da Direcção Geral da Comunicação Social. Neste momento o que se assiste é uma manobra de transferir estas competências para a ANAC, agência que se prepara para acolher, em breve, os quadros e o fiapo de atribuições da DGCS.

Aquando do debate no parlamento, o ministro da tutela, confrontado com esta questão, respondeu muito candidamente, como se isto fosse uma coisa de somenos, que de entre os múltiplos modelos de regulação da comunicação social existentes por este mundo fora, Cabo Verde adoptou um. Ora, não é preciso ser jurista para ver que o estatuto da nossa ARC é uma cópia à letra do estatuto da ERC portuguesa. Faço, contudo, notar que desse meticuloso labor jurídico, foram ignoradas duas normas que são o fulcro de toda e qualquer acção regulatória neste campo. Atentemo-nos ao que diz a lei da Entidade Reguladora para a Comunicação Social no concernente às competências do conselho regulador: Atribuir os títulos habilitadores do exercício da actividade de rádio e de televisão e decidir, fundamentadamente, sobre os pedidos de alteração dos projectos aprovados, os pedidos de renovação daqueles títulos ou, sendo o caso, sobre a necessidade de realização de novo concurso público (art.º 24, e)”. As competências da ERC saem ainda mais reforçadas, pois os estatutos permitem-lhe “aplicar normas sancionatórias previstas na legislação sectorial específica, designadamente a suspensão ou revogação dos títulos habilitadores do exercício da actividade de rádio ou televisão…” A nossa ARC viu-se amputada, cirurgicamente, do importante poder de atribuir licenças aos operadores de rádio e televisão, tendo-lhe sido apenas permitido “pronunciar-se previamente sobre o objecto e as condições dos concursos públicos para a atribuição de títulos habilitadores do exercício de actividade de rádio e de televisão”.

É inacreditável que o Governo não tenha tirado as devidas ilações da confusão criada em 2007 aquando da abertura do mercado televisivo a operadores privados. As críticas sobre a forma pouco transparente como decorreu o concurso fazem-se sentir até hoje, legitimadas, aliás, pela prestação sofrível dos novos canais televisivos. Mas mais, basta analisar as competências dos principais reguladores dos media por este mundo fora, nomeadamente, a Federal Communications Comission (FCC), dos EUA, o Conseil Superieur de l’Audiovisuel (CSA), da França, a Autorità per le Garanzie nelle Comunicazioni, da Itália, o Office of Commucations (OFCOM), da Inglaterra, e a ERC, de Portugal, para se constatar que todos são responsáveis pelo licenciamento da actividade das estações de rádio e televisão. Só o desejo de controlar os media, justifica essa estratégia de viés centralizador.

Voltemos à ausência dos jornalistas no órgão regulador da comunicação social. Sabe-se que a AJOC indicou aos deputados encarregues das negociações com vista à composição da Autoridade Reguladora alguns jornalistas que, na óptica da direcção do sindicato, detêm o perfil adequado para integrar a ARC. A lista foi, por e simplesmente, ignorada. Ora, se é certo que a lei que acabou por ser aprovada no Parlamento não se refere explicitamente à participação de jornalistas na composição do órgão, também não é menos verídico que não existe qualquer interdição à presença dos profissionais da comunicação social. Dizem então os estatutos: “o conselho regulador é composto por cinco personalidades eleitos pela Assembleia Nacional de entre pessoas com reconhecida idoneidade, independência e competência técnica e profissional, com mais de cinco anos de experiência…” (art.º 14, nº1). Não me digam os srs. políticos que não há neste país nenhum jornalista que preencha esses requisitos! Há de haver outra razão indizível que os leva a esconjurar a participação de jornalistas no exercício da regulação. Um dos argumentos é o infundado receio de o regulador ser capturado pelos regulados. Que poder (já agora, com que interesses) tem um ou dois jornalistas para inquinar ou obstaculizar a tomada de decisão dentro da Autoridade Reguladora?
 
Por princípio, não me simpatizo muito com o estabelecimento de quotas de participação de jornalistas, seja em que instância for, mormente no conselho regulador da comunicação social, quanto mais não seja por se tratar de um vasto e diversificado “mercado de ideias”, que se alarga constantemente mercê da convergência tecnológica. Não sendo os únicos actores do panorama mediático, os jornalistas jogam nele, no entanto, um papel central na promoção e defesa do direito constitucional do cidadão à informação. Eles, mais do que ninguém, conhecem por dentro a organização e as condições de produção informativa, pelo que não podem ficar de fora do modelo de hétero-regulação que se quer instituir. 

Já que é na ERC portuguesa que fomos beber, ou melhor, copiar, importa conhecer quem são os actuais membros que compõem essa entidade administrativa independente. A Dra. Raquel Alexandra foi jornalista na SIC desde a sua fundação (1992-2011) e integrou sempre a sua Editoria de Política. Passou por várias rádios e jornais. É Vogal do Conselho Regulador, desde 9 de Novembro de 2011. Portanto, quando foi convidada para integrar a ERC exercia o jornalismo. O Dr. Rui Alberto Gomes é licenciado em Comunicação Social pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1983). Possui ainda o Curso de Jornalismo de Rádio do Centro de Formação da RDP. Iniciou a sua actividade na comunicação social, em 1982, enquanto jornalista na Revista de Informática. Seguiram-se experiências na RTP (1984), Rádio Comercial (1985-87), revista Grande Reportagem (1986-87) e na Televisão e Rádio de Macau (1987-1990). Entre 1990 e 1995, integrou a TSF como repórter e editor de Política Nacional. O vice-presidente, o Dr. Alberto Arons de Carvalho, é especialista em direito de comunicação, foi deputado e Secretário de Estado da comunicação social. É autor de sete livros (três deles em co-autoria) sobre matérias relativas ao Direito e à política de comunicação social. O próprio presidente da ERC, o Dr. Carlos Magno, é licenciado em jornalismo pela Escola Superior de Jornalismo do Porto. O seu percurso no jornalismo iniciou-se na Rádio Universidade. Já na RDP, especializou-se em política, enquanto repórter. Nos anos que se seguiram, assumiu o cargo de Director-Adjunto de Informação da Antena 1, foi Editor do Expresso, no Porto, durante 10 anos, onde fundou a TSF. Esteve também na Direcção do Diário de Notícias e fundou o canal de televisão por cabo que deu origem à RTPi. Dos cinco membros que compõem a Entidade Reguladora para a Comunicação Social portuguesa, apenas a deputada, Luísa Roseira, não possui, pode dizer-se, qualquer ligação directa com os media.
Pergunto: por que é que há-de ser diferente em Cabo Verde? Dizer que os jornalistas que estão não activo não podem integrar a ARC é uma falácia. Basta que o jornalista convidado deposite a sua carteira na Comissão de Carteira para desaparecerem as eventuais incompatibilidades neste sentido. Estamos com a AJOC neste combate em prol de uma Autoridade Reguladora verdadeiramente independente e autónoma, que não seja capturada pelos interesses partidários.