sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Em Defesa da Taxa

Na linha do anterior post, continuamos a reflectir sobre o financiamento da RTC, um debate que interpela não apenas os investigadores da área das ciências da comunicação, os profissionais dos media, os decisores políticos, mas de forma geral todos os cidadãos, de resto a razão de ser da sua existência.

Para além das fontes tradicionais de financiamento do serviço público de televisão (e de rádio), quais sejam, a taxa, paga directamente pelos cidadãos na factura de electricidade, transferências do Orçamento de Estado em forma de indemnização compensatória, e publicidade comercial, o operador deve potenciar as receitas, abrindo novos sectores de intervenção, gerando assim recursos a partir da sua experiência e das infra-estruturas que possui. Citam-se à laia de exemplos, o desenvolvimento de novos serviços de comunicação (teletexto), a edição de vídeos domésticos ou a comercialização de produtos musicais e editoriais saídos de emissões televisivas.

Uma potencial fonte de receitas não desprezível para a RTC é (devia ser), por exemplo, o portal na internet. Não se percebe como é que uma plataforma que converge as ofertas da rádio, televisão, fotos, texto, etc., portanto, conteúdos multimédia que estão fora do alcance da concorrência, esteja a ser pouco rentabilizada na linha da estratégia do utilizador/pagador. O que a nossa comunidade espalhada pelos quatro cantos do mundo não daria para ter acesso a documentários, programas musicais, ficção em língua em língua cabo-verdiana…

O operador de SPT tem por obrigação gerir bem os recursos que os cidadãos, através do Estado, e por obrigação legal, lhe colocam nas mãos, sem desperdícios, concentrando-se nos conteúdos prioritários e empenhando-se na máxima qualidade e rigor, evitando conteúdos sem interesse público, redundantes, e lógicas concorrenciais de “mínimo denominador comum” com os operadores privados.

Em Cabo Verde, à semelhança do que acontece em vários países, a principal fonte de financiamento do serviço público de televisão é a taxa. Pressupõe que deva ser paga independentemente da efectiva fruição do serviço público e da sua frequência, o que significa que abrange (deveria abranger) todos os potenciais espectadores. É este carácter involuntário que diferencia este pagamento do referente a serviços de pay tv. Simplificando: a taxa pode ser considerada como uma remuneração que confere o direito a receber o sinal das emissões do serviço público de televisão ou como uma contribuição especial para o seu financiamento total ou parcial.

As vantagens da taxa de rádio e televisão são inúmeras: A sua previsibilidade, nomeadamente se o montante foi fixado plurianualmente, garante aos dirigentes do operador de serviço público uma informação necessária à sua gestão e uma adequada planificação. Assegura igualmente uma importante independência face às receitas publicitárias, condicionadoras das opções de programação.

Como é sabido, a originalidade, a diversidade, a diversidade e a criatividade da programação dos operadores de serviço público variam na razão inversa da sua dependência das receitas comerciais, em especial publicitárias (Traquina, 1995).

A taxa garante também mais independência do que as subvenções públicas, que poderão induzir uma indesejável influência do poder político, tendo em conta a possibilidade de a aferição do montante e o timing de atribuição dessas verbas poder ser utilizado para condicionar a independência do operador.

A sua universalidade cria um vínculo entre os cidadãos e os operadores de serviço público, que se reveste, todavia, de inegável ambiguidade, uma vez que o cidadão contribuinte se pode tornar, com maior legitimidade, o mais exigente dos críticos, quer da programação, quer mesmo da sua gestão.

Mas, a imposição de uma taxa não está isenta de polémica. A necessária actualização do seu montante, sobretudo, face aos recentes desafios da tecnologia digital, traz-lhe uma crescente impopularidade, tanto mais que a crescente oferta televisiva, em alguns casos inclusivamente através de serviços apenas acessíveis mediante pagamento - pay tv e a consequente fragmentação das audiências tem atenuado o tradicional vínculo entre o cidadão e o seu serviço público de televisão. Essa impopularidade se acentua com a perda de legitimidade decorrente da fraca qualidade da programação e do sistemático desrespeito pelos princípios da universalidade, igualdade e participação.

Por outro lado, a legitimidade política e jurídica da taxa fragiliza-se com a transferência de espectadores para os operadores privados, porque eles continuam a pagar um serviço de que usufruem menos ou de que já não usufruem mesmo. É por isso que, doutrinariamente, a sua classificação como imposto se torna mais justificável, uma vez que não lhe subjaz uma relação sinalagmática (Carvalho, 2009).

Seja como for, torna-se ainda mais difícil reflectir sobre o modelo de financiamento do SPT quando não nem sequer existe um contrato de concessão. Na conferência realizada pela Rádio Televisão Cabo-verdiana, em 2007, o então delegado do Governo na RTC, fazia depender a assinatura do contrato de concessão da clarificação do financiamento da empresa.

Segundo Eurico Pinto Monteiro, “o Estado, além de alocação orçamental, subsídio, está a reformular a actual taxa da RTC. Não se vai aumentar essa taxa porque ela é um imposto, aliás, em Portugal houve um problema idêntico, a ponto de o Tribunal Constitucional ter dito várias vezes que a taxa era um verdadeiro imposto, mas aqui em Cabo Verde essa taxa foi fixada por um decreto regulamentar o que viola a Constituição pelo que não sendo taxa, sendo um imposto, deveria ser aprovado pela Assembleia Nacional.

Por isso, o governo pretende reformular a taxa, mudando-lhe, inclusive, a designação para “contribuição para a rádio e televisão”. Mas nessa mesma lei há um princípio de limitação da publicidade. “A RTC não vai poder fazer publicidade intensivamente porque nós estamos em economia de mercado, o sector privado terá que ser apoiado e, portanto, o estado agora vai procurar compensar a empresa com outros meios financeiros, talvez elevando ou triplicando ou quadruplicando o actual subsídio de indemnização compensatória, mas a publicidade vai ser reduzida – não vamos fazer concorrência às televisões privadas, porque o estado não é comerciante. Portanto, o Estado tem meios para fazer subsistir a empresa, mas sem beliscar os privados. E a taxa será cobrada com ética.”

O PCA da RTC, presente no encontro, tratou de esclarecer que não se opunha à lei de protecção dos direitos do consumidor, até porque não eliminava a taxa. “Apenas dá a possibilidade de um pagador de pedir a desagregação da factura e não teve em conta o modelo de recebimento da taxa da RTC, e sem esse modelo que já está instituído não vai ser possível à RTC arrecadar as receitas que tem que arrecadar. Todas as semanas recebemos na RTC listas de 2 e mais páginas de pessoas que se recusam neste momento a pagar a taxa e eu não vou perder tempo nos tribunais para cobrar às pessoas individualmente 400 escudos. Há que encontrar uma solução.”

De acordo com Marcos Oliveira, os estudos que estavam a ser feitos indicavam claramente que a RTC não devia abdicar da taxa. A empresa devia antes batalhar para quadruplicar o subsídio de compensação e não devia retirar-se do mercado publicitário, uma opção que poderia ser racionalizada, mas não ignorada, sob pena de não haver sustentabilidade da empresa. “Ou se quer manter a empresa para cumprir a sua missão de serviço público ou então não se tem a empresa, não se tem serviço público. A questão fica neste ponto. Portanto o estudo é inequívoco em relação a isto: manter a taxa, criando eficiência na sua cobrança, manter a publicidade e aumentar o subsidio de compensação que está 10 anos desactualizado”.

A ministra-adjunta, tutela da Comunicação Social, Sara Lopes, garantia, por sua vez, que o governo ia levar ao parlamento algumas medidas no sentido de se promover a reestruturação da Rádio e da Televisão públicas; de se reestruturar e renovar os mecanismos de financiamento da RTC que neste momento segue modelos pouco eficazes, porque irregulares, porque imprevisíveis.

“Nem sempre se diz tudo aquilo que o Estado investe na comunicação social, sobretudo, na RCV e TCV. A comparticipação do estado nos órgãos públicos não passa apenas pelo subsídio de compensatório. A maior parte dos investimentos realizados, seja com vista a se conseguir a universalidade da cobertura, que é um objectivo prioritário, seja com vista a se conseguir a modernização que é o desafio que nós vamos atacar com toda a determinação em 2008/09, a criação das condições de trabalho, passam quase sempre pelo financiamento do estado, seja através do tesouro, seja através de meios financeiros mobilizados através da ajuda ao desenvolvimento e dos parceiros de desenvolvimento.”

Apesar da garantia de que “o estado tem meios para fazer subsistir à empresa”, o que é certo é que a taxa, por causa da lei de protecção dos consumidores, facilita a evasão ao pagamento, permite a desobrigação dos cidadãos para com “o direito a receber o sinal das emissões do serviço público de televisão”, fragiliza o vínculo que deve existir entre o cidadão o operador do SPT.

Embora não haja dados estatísticos em relação à “evasão à taxa”, não é difícil adivinhar que, cada vez mais, aumenta o número de pessoas que se recusam a contribuir para o financiamento do serviço público com a justificação de que não usufruem desse serviço. Esperava-se que o governo, ao tornar a taxa “socialmente mais justa”, compensasse a RTC pelas perdas que inevitavelmente adviriam na arrecadação de receitas por esta via.

Enquanto por este mundo fora a evasão à taxa de televisão (e rádio) preocupa os governos, que procuram desesperadamente formas de a estancar, sob pena de terem que suportar os custos do financiamento do SPT no Orçamento, o que representa um peso considerável na dívida pública, por cá o governo assiste de camarote ao esgotamento da principal fonte de financiamento do serviço público através da comparticipação dos cidadãos.

É sabido que a empresa que cobra a taxa, a Electra, retém, como contrapartida, 10% da receita colectada. Ainda assim, nos últimos anos a transferência dos montantes arrecadados faz-se às pinguinhas e com atrasos substanciais. Ou seja, existe uma imprevisibilidade que não abona uma gestão assente na planificação. Para o governo o acordo existe entre a RTC e a Electra é um assunto que não lhe diz respeito, não obstante tratar-se de uma medida que resulta de um decreto-lei aprovado pelo executivo em 97. A sustentabilidade económica e financeira do serviço público de rádio e televisão está seriamente comprometida, mas isso parece não preocupar o governo. Resta saber se estará o Estado em condições de arcar com a totalidade do financiamento da RTC através do Orçamento, ou de sanear, mais uma vez, as dívidas da empresa. A ministra das Finanças que responda!

Quanto ao subsídio de indemnização compensatória remetido à empresa em regime de duodécimo, portanto, ao arrepio da lógica plurianual aconselhável na gestão do SPT, não sofreu qualquer aumento desde que foi instituída em 1997. No que concerne às receitas publicitárias, apesar de ainda não existir um limite legal à emissão de publicidade por hora de emissão, salta à vista de qualquer telespectador atento que o mercado cabo-verdiano é extremamente frágil e, como se não bastasse, o minguado bolo publicitário passou a ser, desde 2007, disputado por todas as estações de televisão.

Embora, salvaguardando as devidas realidades económicas e sociais, assim como a proporção dos mercados, convém comparar o valor da taxa paga pelos cabo-verdianos (475 escudos, menos de 5 euros mensais, perto de 60 euros anuais), com o de outros países europeus.

O montante varia muito consoante os países, oscilando entre (valores de 2006) os 309, 3 euros anuais da Islândia e os 49,3 euros da Polónia, os 43,6 da Republica Checa, os 20 euros de Portugal (20,5 em 2008) ou os 14 euros da Roménia. A Dinamarca (208,2), a Áustria (244,0), a Noruega (247,4), a Suécia (217,4), a Alemanha (204), Suíça (174,8), Finlândia (200,7), Reino Unido (195,0), têm montantes acima de 180 euros anuais, ou seja, mais de 15 euros mensais.

Irlanda (185,0), Eslovénia (132,0), da França (116,5) e da Itália (99,6), pelo contrário, impõem montantes anuais mais baixos (UER/EBU, 2007:23).

Importa sublinhar que na maior parte desses países, com excepção da Suíça, Dinamarca, Roménia e Republica Checa, os valores indicados respeitam ao valor conjunto das taxas dos serviços públicos de Rádio e Televisão. Recorde-se igualmente que os operadores públicos de alguns países estão sujeitos a limites específicos na difusão de publicidade.

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

As Dívidas da RTC

A recente notícia publicada pelo jornal Expresso das Ilhas no início deste mês – ainda não desmentida pelo conselho de administração - em relação às dívidas da RTC, a rondar os 700 mil contos, não pressagia nada de bom. A manter-se o ritmo de crescimento da dívida, a médio prazo, a empresa estará condenada a uma situação de estrangulamento financeiro, o que, certamente, porá em causa a sua sustentabilidade e, logo, a incapacidade em cumprir a missão de prestação do serviço público de rádio e televisão.

Na verdade, estamos perante sinais que indiciam uma crise em três dimensões: de identidade, de funcionamento e de financiamento. Julgo ser consensual que é urgente clarificar o modelo de serviço público cometido à RTC, reformar a sua forma de governo, de gestão e de financiamento. É igualmente imprescindível tornar mais eficiente a organização da empresa, reduzindo os custos e aumentando a produtividade. Para isso, há que adoptar técnicas modernas de gestão e administração desde a contabilidade industrial ao controlo de gestão, da criação de planos a curto médio prazo à gestão dos recursos humanos.

O financiamento do operador de serviço público exige legislação específica e instâncias fiscalizadoras ou de regulação das actividades em curso. Importa dizer que a lei que cria a Autoridade para a Comunicação Social, recentemente aprovada no parlamento, prevê “a fiscalização do cumprimento das obrigações de serviço público no sector da comunicação social, a determinação da prática de infracções respectivas e a aplicação das competentes sanções.” À ARC compete ainda “promover a realização e a posterior publicação integral de auditorias anuais às empresas concessionárias dos serviços públicos de rádio e televisão e verificar a boa execução dos contratos de concessão.” Pensamos que a transparência nos actos de gestão sairia reforçada se, como aliás acontece nalguns países europeus, o Tribunal de Contas tivesse competências para fiscalizar as contas do operador público. Afinal, estamos a falar do dinheiro dos contribuintes.

O financiamento do serviço público de televisão (e de rádio) não é, como se pode pensar, um assunto de somenos. A tendência é, por vezes, analisar a questão apenas pelo lado da obtenção de verbas suficientes para o desenvolvimento das actividades do operador público. Pelo contrário, a origem dos montantes, a dimensão e as suas diversas modalidades, são de importância capital, porquanto estes aspectos podem condicionar a independência da concessionária, bem como o tipo de programação emitida. Estamos, pois, perante um dos principais pilares do serviço público.

Cabe ao Estado assegurar um quadro seguro e apropriado de financiamento, de molde a permitir ao radiodifusor de serviço público planificar a longo prazo as suas actividades. Recomenda-se, outrossim, uma diversificação da origem das fontes de financiamento, o que favorece tendencialmente a sua independência e minimiza os riscos provenientes da vinculação às receitas de uma fonte única. À semelhança do que acontece a nível europeu, onde nasceu o serviço público de rádio e televisão, a RTC beneficia de um modelo de financiamento misto, composto pela taxa, a indemnização compensatória e receitas publicitárias. Há, no entanto, diversas formas de financiamento que convém não ignorar: a taxa, as subvenções públicas, as dotações de capital, a emissão de divida pública, as operações de crédito, a publicidade comercial e as receitas provenientes de outras actividades de natureza comercial, incluindo a venda de programas, a pay tv e as actividades no âmbito do multimédia.

É evidente que não faz sentido analisar o financiamento do serviço público de televisão desligado da exigência de uma programação de qualidade. Se é verdade que abundam argumentos e razões para justificar a existência da televisão pública, não se pode negar que há cada vez mais vozes a exigir que se reformule e aprofunde os seus objectivos e funções no contexto de transformações tecnológicas e de maior oferta televisiva com o concurso de operadores privados. Quanto ao canal público, deve dar resposta às solicitações de uma programação de qualidade, promover a inovação criativa, reflectir a diversidade cultural, social e regional, garantir uma informação equilibrada, plural e autónoma.

Tudo isto exige, certamente, para o conceito de cidadão a que a televisão pública se dirige, garantir a sua independência “face à autoridade política do Estado, como à arbitragem económica do mercado”. Isso, só será possível através de uma estrutura política e de gestão autónoma, baseada no controlo e na nomeação parlamentar e não coincidente com os períodos legislativos. Pressupõe igualmente bases económicas realistas, sem as quais não há projecto político ou cultural que possa vingar; um financiamento predominantemente público, estável e garantido plurianualmente, regido por contratos específicos com o Estado.