quinta-feira, outubro 20, 2011

A Passo de Caranguejo

Ao que consta, a lei que cria a autoridade administrativa independente para a regulação da Comunicação Social e o respectivo estatuto regressam, de novo, ao Parlamento para discussão e eventual aprovação. Espero que desta vez seja mesmo para valer, até para se poder cumprir o preceito constitucional introduzido na última revisão ordiária.


A convicção de que sector da comunicação social não constitui prioridade para os actores políticos, não importa o governo de turno, tem vindo a acentuar-se junto dos profissionais, não faltando exemplos que reforcem esse sentimento. Senão vejamos: Para que os jornalistas pudessem dispor de um título que os habilitasse a exercer a profissão, a tão aguardada carteira profissional, um imperativo da Lei da Comunicação Social publicada em 1998, tiveram que esperar largos anos, num processo que se arrastou de 2004 a Abril deste ano, isso para não falar na trapalhada que foi a criação da Comissão da Carteira; o pacote legislativo para a comunicação social atolou na indefinição e no desinteresse (meia culpa para os jornalistas que se limitam a lamentar), saltitando de tutelas, até que, de uma assentada, foi aprovado no ano passado, não estando isento de críticas, pois, ao contrário do que se pretendia, há aspectos que configuram retrocessos no ordenamento jurídico dos meios; continua-se ainda à espera de uma clarificção sobre o âmbito e o modelo de serviço público de rádio e televisão que se quer para o país, até porque, note-se, desde a criação da RTC, em Agosto de 1997, ainda não existe um contrato de concessão que balize as relações entre Estado e a empresa, e salvaguarde os interesses do cidadão que é quem, de facto, financia o serviço em mais de dois terços; desde 2006, aquando da realização, com pompa e circunstância, do fórum “Comunicação Social em Momento de Viragem”, diga-se, em abono da verdade, um dos debates mais profícuos e esclarecedores sobre o sector já realizados entre nós, continua-se a aguardar o prometido “Plano Estratégico” para os media nacionais... poderia citar vários outros exemplos, mas devido à exiguidade do espaço, prescindo de o fazer.


A modernização do sector da comunicação social, que poderia constituir uma prioridade para um país insular como Cabo Verde, tendo em conta as vulnerabilidades de vária índole, não o é. É verdade que o país tem ainda pela frente um sem número de desafios a vencer, de que se destacam, a infra-estruturação, a luta contra a pobreza e exclusão social, o abstecimento de energia e água, a insegurança, a criminalidade urbana, o narcotráfico, o desemprego, a qualidade do ensino, as incivilidades, etc. mas, convenhamos, nada disso se conseguirá sem uma comunicação social forte, livre, vibrante, com a noção clara das suas responsabilidades sociais. A aposta numa cada vez maior qualificação e especialização dos jornalistas é o caminho a seguir.


Infelizmente, constata-se que não existe qualquer interesse em recolocar os media na agenda da cooperação internacional, quer a nível bilateral como multilateral. Ouve-se falar de milhões provenientes, nomeadamente, do MCA (há mais um pacote a caminho, e, claro, à comunicação social não lhe toca sequer um tostão furado); a Parceria Especial com a União Europeia até já se presta a avaliações, e a imprensa não é nem tida nem achada. Nos contactos com os parceiros tradicionais há muito que a imprensa deixou de fazer parte do menu das negociações. A lógica é do ‘apoio orçamental’ onde a fatia do bolo para os meios é bastante sofrível.


Para os actores políticos a comunicação social está forte e vigorante quando as suas actividades politico-partidárias, a começar pelas declarações e conferências de imprensa são cobertas pelos media. Ou seja, quando nos sujeitamos ao papel acrítico de caixas de ressonância ou de correias de transmissão. Se por uma outra razão, que bem pode estar ligada aos constrangimentos organizacionais ou a critérios jornalísticos, não se vai a uma actividade de um partido, as coisas mudam de figura, e então brande-se o fantasma da manipulação. Não lhes interessa se as necessidades dos cidadãos em matéria de informação, formação e entretenimento estão a ser satisfeitas.


Temos todos assistido no Parlamento a acesos debates sobre temas variados como, por exemplo, energia, justiça, competitividade da economia, até sobre o orçamento privativo da Assembleia Nacional, mas quando o assunto é comunicação social, a discussão se extrema em quem controla ou manipula mais. Alguém já ouviu, por acaso, um debate a sério sobre o serviço público de rádio e televisão em Cabo Verde que ajudasse a esclarecer algumas questões como, por exemplo, a sua independência e autonomia, o modelo de gestão (governamentalizado, parlamentarizado, de sociedade civil, misto…), o financiamento, a qualidade da programação, etc?


Até perece que existe um pacto entre os maiores partidos em como não vale a pena levantar muita celeuma em relação à comunicação social, sob pena de não se beneficiar do status quo quando se ascender ao poder. Pois, qual é o governo que não tem a tentação de pressionar e manipular os media? Vejo que não falei da ARC, fica para a semana.

Carlos Santos
http://kriolradio.blogspot.com/


terça-feira, outubro 18, 2011

O Uso do Crioulo nas Emissões de Rádio

Não bastasse ter espalhado os dez grãozinhos de terra no meio do imenso Atlântico, Deus bafejou Cabo Verde com uma única língua materna – o crioulo – falada pelo seu povo dentro e fora das ilhas. O crioulo é o principal traço de ligação e o melhor elemento identitário do cabo-verdiano. Embora existam pequenas diferenças dialectais entre as variantes de ilha para a ilha, os cabo-verdianos, em geral, entendem-se em crioulo, seja qual for a ilha de que seja oriundo o falante ou o seu interlocutor. Em qualquer parte do mundo em que se encontre, o cabo-verdiano pode falar a língua do país onde reside ou que o acolhe, mas, seguramente, fala a sua língua materna. Enfim, o que une, indelevelmente, os cabo-verdianos espalhados pelos quatro cantos do mundo é, antes de mais e sobretudo, a língua comum, a sua língua materna – o crioulo.


A Constituição da Republica de Cabo Verde diz, de forma explícita, que “a língua oficial é o português”. Garante ainda que “ o Estado cria as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Mas mais: segundo a Constituição, “todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las”.

Dos meios da comunicação social espera-se, não apenas a contribuição para a correcta formação da opinião pública e educação cívica dos cidadãos, bem como a promoção da democracia, mas também “a difusão da cultura e reforço dos valores e da identidade nacional”. (Lei nº 70/VII/2010). A lei da radiodifusão, revista e publicada no ano passado, obriga, ainda que de forma genérica, a concessionária do serviço público a “emitir programas regulares vocacionados para difusão da língua e cultura cabo-verdianas” (Lei nº 71 /VII/2010). Porém, uma coisa é o ordenamento jurídico, outra, diferente, é o desempenho e a importância que os media nacionais atribuem ao desidrato de promover e divulgar a língua cabo-verdiana.


O principal objectivo da imprensa escrita e dos media electrónicos, enquanto meios de propagação de informação no espaço público, é, sublinha Nelson Traquina, fornecer relatos dos acontecimentos julgados significativos e interessantes para a vida do homem na sociedade. Para isso, dois elementos desempenham um papel absolutamente importante: a imagem e a palavra.
Ao contrário da imprensa escrita em que o jornalista se vê obrigado a traduzir para o português as declarações (opiniões, sentimentos, factos, etc.) que uma fonte – por opção ou necessidade – tenha proferido em crioulo, na rádio os registos sonoros mantêm-se inalterados na lingua-materna, embora todo o texto esteja escrito em português. Portanto, parte-se do princípio que, do ponto de vista da oralidade, todo o cabo-verdiano entende a língua de Camões.


Embora não exista nenhuma norma escrita ou implícita que proíba o jornalista – em situação formal de comunicação - de usar o crioulo nos seus trabalhos jornalísticos, o que brigaria com o espírito da Constituição da República, existe quase que um consenso em como a comunicação em antena faz-se em português. Na frente informativa, existe em toda a grelha da programação da RCV um único espaço noticioso escrito e lido em kabuverdianu. Importa esclarecer ainda que o “Jornal Crioulo” praticamente nunca tem edição própria, vivendo, por isso, quase que exclusivamente da tradução de notícias saídas nos demais noticiários. Curiosamente, os registos sonoros em português das peças não são, por e simplesmente, usados. Quando muito, e tratando-se de um som importante, opta-se por transcrever no corpo da notícia o seu conteúdo. Já uma vez se aventou a possibilidade de dobragem do crioulo para a língua portuguesa, hipótese prontamente descartada pelos jornalistas, pois, alegaram, tratar-se-ia de uma formulação aberrante, uma vez que todo o cabo-verdiano entende o português.

Nos últimos tempos, algumas vozes críticas se têm feito ouvir quanto à real finalidade dessa (única) janela de informação no crioulo cabo-verdiano. Se sobre o operador público de radiodifusão impende a obrigação de promover e divulgar a língua materna, por que não fazê-lo respeitando as normas que já existem para a escrita do Kabuverdianu? Com efeito, não faz sentido que na elaboração dos textos que compõem esse jornal não se leve em conta o alfabeto (ALUPEC) - que vigora a título experimental - e muito menos os parcos instrumentos didácticos, como as gramáticas e os dicionários, frutos de vários anos de labor linguístico de investigadores que se preocupam, nomeadamente, com o perigo da descrioulização lexical. É que, como sublinha o antropólogo, João Lopes Filho, a linguagem é mais do que um meio de comunicação do pensamento. É, sobretudo, “um elemento estruturante fundamental do próprio acto de pensar, de ler e de percepcionar o mundo, ao ponto de a cosmovisão de um dado indivíduo ser programada pela sua língua”.


Acresce que o Jornal Crioulo nunca teve um corpo redactorial próprio. A sua “edição” foi, desde a sua criação, assumida por profissionais que, embora integrassem a redacção, não detinham o estatuto de jornalista profissional, ou, nalguns casos, por jornalistas estagiários em início de carreira, e até mesmo por secretárias de redacção. Houve até gente sem nenhuma ligação com o jornalismo a coordenar e a apresentar esse jornal. Ou seja, os jornalistas encaram esse espaço noticioso mais como um problema linguístico do que propriamente sujeito a normas e critérios de noticiabilidade. A impressão que se tem – há que dizê-lo - é que os jornalistas vêem na edição do “Jornal Crioulo” uma desvalorização do seu estatuto e prestígio profissionais.


Para se aquilatar dessa aversão, em 2007, depois de várias tentativas para sensibilizar os jornalistas no sentido de assumirem o espaço de informação na língua di terra, a direcção viu-se obrigada a lançar um concurso interno para apurar eventuais interessados, mediante a promessa de um subsídio de edição de 20 mil escudos (quase oito mil meticais). O único interessado foi um jornalista/animador e relator de futebol. Além dessas preocupações, há quem também questione – e com razão – o uso exclusivo da variante de Sotavento, tendo como expoente máximo a ilha de Santiago – na escrita e leitura desse serviço noticioso.


A este propósito, importa recordar que o primeiro colóquio linguístico realizado em 1979, na Cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, adoptou como referência a variante de Santiago como língua de base, e, portanto, também da escrita. Uma opção sustentada na altura não pelo facto de o crioulo de Santiago ser melhor ou pior, mas, porque, na opinião de alguns linguistas, nomeadamente, Baltazar Lopes da Silva e Dulce Almada, “a realização fonemática se aproxima em grande medida da estrutura da língua portuguesa”, além de que “é a variante falada por cerca de metade da população do país.”


Como para além da informação, a concessionária do serviço público de radiodifusão deve também assegurar na sua programação, que se deseja de referência, inovadora e de qualidade, a satisfação das necessidades culturais, educativas, formativas e recreativas dos diversos públicos, atentemos ao uso do crioulo nas demais faixas da programação.

À semelhança do que acontece com os noticiários e programas de grande informação (debates, entrevistas, grandes reportagens, etc.), os blocos de emissão e os programas de entretenimento são conduzidos na língua portuguesa. Contudo, sempre que o convidado se mostre interessado em falar crioulo, ou porque não se sente muito à-vontade no uso do português, ou porque pretende que a sua mensagem seja descodificada sem que suscite dúvidas (ruídos) no auditório, o jornalista adopta o mesmo código linguístico. Aliás, nos programas de variedades, existe sempre o hábito de se perguntar ao convidado se quer dirigir-se à audiência em crioulo ou em português. Há ainda casos em que o convidado começa a falar em português, faz uma incursão pelo CCV e termina o seu discurso em português. Sempre que essas deambulações - que indiciam já um bilinguismo - acontecem, o jornalista acompanha o seu interlocutor.


Quanto à participação dos ouvintes, quer nos programas de informação, quer nos de entretenimento, ela é, na maioria esmagadora dos casos, feita em crioulo. Portanto, os receptores ou destinatários a quem a mensagem radiodifundida se dirige, respondem, sempre que se lhes conceda uma oportunidade de interagir com o emissor, na sua língua materna. Um dado curioso, no entanto, é que as emissões especiais com carácter lúdico ou de diversão produzidas fora do ambiento do estúdio, com a assistência do público, são quase sempre feitas utilizando o Kauberdianu.


Apesar de não existir, tal como salientámos, nenhuma norma escrita, inserta no estatuto editorial, no livro de estilo ou mesmo no contrato individual de trabalho dos profissionais da rádio que os impeça de elaborar e apresentar os seus trabalhos jornalísticos em crioulo, notamos que estes se mostram pouco à-vontade e renitentes na utilização mais frequente da língua cabo-verdiana nas antenas da Rádio de Cabo Verde. Os jornalistas alegam que não foram alfabetizados no crioulo, por isso, não se sentem preparados para o escrever. Mas, há quem defenda tratar-se de um preconceito na utilização de uma língua que, à partida, consideram menor, que não concorre para a sua projecção e status social.

O argumento segundo o qual não se escreve o CCV porque é uma língua que não se aprende na escola é desconstruído por alguns linguistas, entre os quais, Manuel Veiga, um dos mais acérrimos defensores da dignidade do Kabuverdianu. Explica o ex-ministro da Cultura que “a melhor maneira de dominar a escrita do crioulo, não será pela via do português. Há que praticar essa escrita. Além disso se queremos desenvolver a nossa língua temos de servir-nos dela. Utilizando o português teríamos, com certeza, um público muito mais vasto, mas isto apenas para a informação. O uso do crioulo, pelo contrário, não só reforça a sua prática, mas contribui para a afirmação do seu valor”.


A este propósito, lembra o escritor David Hopffer Almada que, mesmo quando não havia regras escritas, nem gramática, isso nunca impediu que os nossos trovadores, compositores, poetas e escritores sempre se tivessem feito compreender, oralmente e por escrito, em crioulo.


Assim como se preocupa em dominar pelo menos uma língua estrangeira – o inglês ou o francês – o jornalista deveria também investir na aquisição de conhecimentos da língua cabo-verdiana de molde a poder usá-la como ferramenta, a par do português, no desempenho da sua actividade profissional. Aliás, já no Colóquio Linguístico realizado no Mindelo, destacava-se o papel do escritor e do jornalista na afirmação e no desenvolvimento da língua escrita. Mas para isso, torna-se importante haver uma política de incentivos à criatividade literária e à utilização do ALUPEC – alfabeto unificado para a escrita do crioulo - na comunicação social, como forma de contribuir para a afirmação da língua, enquanto código de comunicação escrita.


É que não basta adoptar as bases e padronizar alguns aspectos que ultrapassam a fronteira do alfabeto como forma de disciplinar minimamente a escrita da língua. Torna-se imprescindível que haja uma politica linguística clara e com reflexos na política do ensino. Que se incentive a escrita e se instituam os mecanismos de divulgação da nossa língua e da nossa cultura. É imprescindível que se conceba uma politica linguística que permita ao Crioulo partilhar com o português o estatuto de língua oficial.


Infelizmente o sonho de ver o Crioulo tornar-se língua oficial terá que aguardar mais alguns anos, uma vez que os actores políticos não se puseram de acordo em relação a um elemento crucial para a dignidade de qualquer povo, que é, justamente, a liberdade de puder utilizar a sua língua de berço em qualquer contexto ou circunstância, sem ser submetido a “tortura” de se exprimir (oral e escrito) numa língua que não domina.


As dúvidas, a desinformação, as contradições que enformaram o debate dessa questão na sociedade civil tiveram impactos na Casa da Democracia, deitando assim por terra a proposta de oficialização do crioulo cabo-verdiano.


É caso para dizer: perdeu-se uma batalha, mas não a guerra. O crioulo está de tal forma entranhado na identidade cabo-verdiana, que não é possível pensar o cabo-verdiano sem a sua língua materna, como ele próprio não se pensa e não existe sem a sua língua. Prova disso foi a constatação do renomado e saudoso escritor brasileiro, Jorge Amado, que, depois de alguns dias em Cabo Verde, concluiu que “a vida em Cabo Verde decorre em crioulo”!


Apesar do pouco à-vontade dos jornalistas no uso, em antena, da língua cabo-verdiana, pode-se, ainda assim, garantir que a Rádio Nacional de Cabo Verde é o meio de comunicação social onde mais se usa o Kabuverdianu. Na imprensa escrita e nas televisões domina, por e simplesmente, o português.


Cientes das responsabilidades do operador público na divulgação e na promoção da língua materna, a direcção da RCV criou, em finais de 2007, um novo canal temático direccionado ao segmento jovem do público que tem exclusivamente o crioulo como língua de trabalho. A adesão dos jovens à RCV+ é prova de que o uso da língua cabo-verdiana é o caminho a seguir na animação e informação radiofónicas.


Um outro dado igualmente relevante, indício, de que o cenário da utilização do crioulo nos meios de comunicação social conhecerá dias melhores, é o facto de a Universidade de Cabo Verde ter criado no ano passado um mestrado em Crioulística e introduzido nos curricula do curso de comunicação social, que arranca ainda este ano, uma cadeira para o ensino da língua cabo-verdiana a candidatos a jornalistas. As TIC têm vindo a constituir-se numa potente ferramenta para a disseminação da grafia do crioulo. Basta ver que a comunicação online no Twiter, no Facebook, assim como os SMS e os chats na internet faz-se em crioulo.

Carlos Santos