quarta-feira, dezembro 09, 2015

UMA VOZ CRIOULA NO ATLÂNTICO

O panorama radiofónico da colónia de Cabo Verde iria conhecer uma nova dinâmica com a inauguração oficial, pelo Governador Manuel Abrantes Amaral, da Rádio Barlavento, no dia 30 de Junho de 1955. A emissora, no entanto, já vinha transmitindo em regime experimental, tendo emitido pela primeira vez o seu sinal no dia 13 de Maio do mesmo ano. Trata-se da realização de um sonho acalentado pelos sócios do Grémio Recreativo do Mindelo, cujo desejo principal era o de serem úteis aos seus concidadãos, colocando para isso o radiodifusor ao serviço de “Portugal de Cabo Verde”.

Os promotores da iniciativa, liderados por Aníbal Lopes da Silva, acreditavam que a ilha de S. Vicente, com o seu Porto Grande, escala obrigatória entre a Europa, América do Sul e África, atravessando uma dinâmica comercial a todos os títulos invejável, sendo o centro mais importante do Arquipélago, oferecia todas as condições para uma estação de radiodifusão que tivesse a missão de fazer a propaganda de Cabo Verde e do seu Porto Grande e, ao mesmo tempo distrair, instruindo a população das ilhas.

Com base na promessa feita pelo Governador, Tenente Coronel Alves Roçadas, em apoiar a iniciativa que representava mais um passo no desenvolvimento de Cabo Verde, os cento e quarenta sócios do Grémio disponibilizaram 130 contos de uma subscrição aberta entre eles, e prometeram colaborar gratuitamente na organização, montagem e funcionamento da emissora. Assim, através de um empréstimo de 200 contos, valor que seria descontado num subsídio que, por ordem do Governador, a S.A.G.A concedeu, encomendou-se à PHILIPS portuguesa - que prometeu facilidades de pagamento – um emissor de 1KW e a aparelhagem necessária para o funcionamento da estação.  

Conforme escreve o Dr. Aníbal Lopes da Silva, na edição especial dedicada a Cabo Verde (nº 80) da Revista Portuguesa “ de todas as ilhas e de indivíduos de todas as categorias sociais, da Guiné, de Dakar, da Metrópole e do Brasil, vinham palavras de incitamento e de apoio material. As câmaras municipais atenderam os pedidos que lhes foram dirigidos, inscrevendo subsídios aos seus orçamentos. A Câmara de S. Vicente, além de um generoso subsídio anual, forneceu gratuitamente energia eléctrica indispensável, e assim, embora fosse impossível diminuir excessivamente a dívida, a Rádio Barlavento conseguiu manter-se à espera de melhores dias que, finalmente, chegaram com a concessão por parte do Governo de um subsídio anual de 75 contos, que sua Excelência o ministro do Ultramar, Dr. Raul Ventura, por informação de sua Excelência, o Governador, mandou inscrever no orçamento da província” (Maio, 1957).

Registada sob a sigla CF4AC, a estação emitia em ondas curtas, inicialmente na banda dos 50,2, passando depois, para os 75 metros, das 18:30 às 19:30, tendo aumentado gradualmente o período de emissão até atingir as seis horas diárias.

O Notícias de Cabo Verde dá conta, na sua edição do dia 21 de Agosto de 1954, que a direcção do Grémio Recreativo Mindelo, na altura presidida pelo médico José Duarte Fonseca, reuniu na sua sede várias personalidades para apresentar a aparelhagem que acabara de receber para os seus serviços de radiodifusão. De acordo com Rolando Martins (2005), trata-se do mais potente emissor de Cabo Verde e que, de facto, cobria todo o país. Mais tarde a Rádio Barlavento passa também a emitir, simultaneamente, em frequência modulada.

O jornalista Fonseca Soares (2007) conta que apesar da estrutura amadora, a Rádio Barlavento era, em 1971, ano em que foi admitido como ajudante de estúdio, bastante bem organizada a ponto de ter concebido testes específicos para triagem de candidatos a estágios de radialistas, nomeadamente para discotecário, ajudante de estúdio (operador de som) e locutor (apresentador).

Para a escolha de um locutor, “além de habilitações literárias, era necessário passar por um teste de leitura e gravação de ‘papéis utilizados’ nos jornais da estação, com um colectivo de júri (reconhecidos homens da literatura) a aquilatar do mínimo de condições para se ser aceite em estágio. Notava-se desde logo, que havia um perfil bem definido para radialista crioulo que começava pelo timbre da voz, acabando na dicção e um certo nível de cultura geral. Preocupações que, na sua opinião, atestam o profissionalismo, a organização, a seriedade da estação emissora, considerada, no entanto, amadora, com gente a trabalhar em regime de ‘part-time’.

Se na Rádio Clube do Mindelo o aspecto de produção que mais se destacava era a animação de antena, onde a música se cruzava com a leitura de algumas notícias, na Rádio Barlavento, cujos responsáveis alimentavam o sonho de a transformar numa estação emissora de dimensão verdadeiramente nacional, a preocupação com a informação era visível.

Os colaboradores da rádio, alguns dos quais estudantes do liceu, que tinham passado pela RCM, puderam contar com a experiência do professor Rolando Martins para os orientar no ofício de jornalismo. É o caso de António Pedro Rocha (2009) que deu na RB os seus primeiros passos como jornalista profissional. “Escutávamos várias estações emissoras internacionais, porque na altura nem sequer agências internacionais tínhamos em Cabo Verde, a BBC, a Voz da América, a RFI, em várias línguas e nós, eu o Neney, mais o velho Chico escuta, gravávamos todas essas emissões, que eram diárias e íamos fazendo a tradução, muitas vezes num mau português e eu o Rolando Martins dávamos corpo à notícia e fazíamos o jornal a partir daí…”

Apesar do controlo bastante apertado que o Estado Novo mantinha sobre as emissoras das províncias ultramarinas, sobretudo depois da instalação da PIDE-DGS em Cabo Verde, na década de 60, a informação passou a ser uma componente não desprezível da programação da Rádio Barlavento. O noticiário, explica Rolando Martins, era constituído por várias secções: o local, o da província, o da metrópole, o do ultramar e o noticiário do estrangeiro. “O noticiário da província era enviado pelo Centro de Informação e Turismo, na Praia, em forma de telegrama. Já vinha composto. Os outros noticiários eram transmitidos por morse pela Press Lusitânia, uma agência de notícias ligada ao Governo português, ao Estado Novo, e as notícias eram transmitidas já feitas. Portanto, não se podia mexer nelas.

Os colaboradores da RB limitavam-se a transformar a linguagem telegráfica em linguagem corrente, colocando as pontuações, os quês, os dês, quando havia falha, tentando descortinar, sempre com imenso cuidado, qual a palavra que faltava, para não deturpar a mensagem. Ou seja, “as coisas vinham de tal maneira controladas que não havia meio de se pensar em fazer qualquer coisa que fosse contra a ordem do Estado Novo” (RM, 2005).

A secção “local” era a que permitia alguma margem de liberdade aos fazedores de informação, mas, ainda assim, bastante escassa e sem motivos de interesse, uma vez que as peças recaíam sobre fait divers, nomeadamente as iniciativas sociais, ou as actividades triviais do Governador e da sua comitiva. Os acontecimentos eram na maior parte das vezes reportados pelos próprios sócios do Grémio, sobretudo os mais jovens que, ao terem conhecimento de um evento, redigiam a notícia e levavam-na para a rádio. Um dos mais assíduos colaboradores do “noticiário local” era Jorge Pedro Barbosa, filho do poeta Jorge Barbosa. Quanto aos demais programas, lembra Martins, eram todos enviados para a censura no dia seguinte.

No primeiro ano de funcionamento, a estação emissora CF4AC apresentava uma programação assente na variedade dos conteúdos. Com apenas uma hora e meia de emissão, o alinhamento era o seguinte: abertura com a Orquestra de Luís Rovira, valsas, noticiário, trechos de óperas, encerramento. Durante a semana, a estrutura mantinha-se igual, apenas mudando a designação dos programas.

Como lembra Nogueira (65: 2007), As primeiras gravações musicais realizadas no arquipélago e que vieram a ser editadas em disco foram aí realizadas. Mité Costa, a cantar mornas de Jotamonte acompanhada por um grupo dirigido por ele próprio, foi a primeira da serie de 45 rpm intitulada “Mornas de Cabo Verde”, editada pela Casa do Leão. Seguiu-se, entre outros, Amândio Cabral, com o disco em que grava, não em seu nome, a hoje célebre sodade, cuja autoria veio a registar anos depois.

Foi também a partir dos estúdios da Rádio Barlavento que Sergio Frusoni e Nhô Djunga divertiram os mindelenses com o humor acutilante das suas crónicas que, à hora certa, atraíam muita gente para ouvi-las pelos altifalantes colocados no exterior do prédio
Foi igualmente na Rádio Barlavento, quando completava um ano de existência, em Junho de 1956, que Baltazar Lopes da Silva leu, em duas sessões, a sua palestra indignada sobre o que sociólogo Gilberto Freire escrevera sobre Cabo Verde. E também um texto emocionado sobre a importância da obra de B. Leza, no dia da morte deste compositor, em 1958.

A Rádio Barlavento viria a ser tomada, a 9 de Dezembro de 1974, supostamente pelo “povo” de S. Vicente, instrumentalizado pelos dirigentes do PAIGC, como parte de uma estratégia de consciencialização para a causa da independência. Esta iniciativa viria a marcar, para o bem e para o mal, os caminhos a radiodifusão no país, que acabara de tomar o seu destino nas suas próprias mãos. A Rádio Nacional de Cabo Verde, que nasce em 1985, mercê da junção em cadeia da Rádio Clube de Cabo Verde, que passou a deter o estatuto de emissora oficial; da Rádio Voz de S. Vicente, substituta da Rádio Barlavento, e da Retransmissora do Sal, representa o corolário de todas as evoluções históricas que marcaram o panorama radiofónico cabo-verdiano.

Carlos Santos

P.S. Excerto de um artigo científico que integra o primeiro livro sobre as ciências da Comunicação em Cabo Verde, edição MEDIACOM, 2013



terça-feira, julho 28, 2015

A Socialização do Nada

Há muito que virou moda neste país a realização das longas e fastidiosas jornadas de socialização. Através dos famosos workshops, seminários ou fóruns, socializam-se ideias, planos estratégicos, de acção, estudos de variada índole e objecto, reformas que não saem do papel, e resultados, esses, muito raros, diga-se. Na maior parte das vezes esses encontros têm subjacente uma elaborada estratégia de marketing que visa mais o efeito mediático do que propriamente a promoção de uma reflexão aturada e proveitosa sobre os assuntos supostamente de interesse público. O pior é que na ausência de uma agenda própria, os órgãos de comunicação social dão imenso destaque a essas xintadas. Depois é vê-los espelhados nos jornais e nos alinhamentos das rádios e televisões, acentuando a ideia de um país pachorrentamente sentado.

Já vi de tudo um pouco, mas até agora não tinha calhado estar numa socialização em que aos participantes é vedado o acesso ao documento objecto de análise. Pois bem, na passada sexta-feira fomos todos, nós os funcionários da RTC e da Inforpress, convidados para uma sessão de apresentação do projecto de Decreto-lei para a fusão dessas duas empresas. Para o nosso espanto, não havia documento nenhum, apenas alguns tópicos projectados em data show. Não, não se tratou de um descuido por parte da organização do evento. Se dúvidas houvesse, o ministro Démis Almeida tratou de as dissipar ao dizer que o projecto de diploma é de consulta reservada, porquanto ainda não foi discutido nem aprovado no conselho de Ministros. O governante lá nos explicou por que não o pode fazer, sob pena de incorrer num deslize ético, pois está vinculado ao sagrado dever de sigilo. Mas, acrescentou muito candidamente, que quando a lei for aprovada e, logo, promulgada e publicada no B.O., qualquer um pode, querendo, propor alterações, pois a lei não é imutável. Ou seja, depois do facto consumado, chorem à vontade sobre a asneira derramada! 

Descontando esse elemento processual, preocupa-nos a pressa com que o Governo quer consumar a fusão entre a agência de notícias e a rádio televisão cabo-verdiana. O diploma, segundo nos foi dito, será aprovado já no final deste mês pelo conselho de ministros, e em Outubro será escolhido um conselho de administração ad hoc que irá criar as condições para que a E.C.C.I, S.A, (que mau gosto!) entre em funcionamento antes do final deste ano.

Por ter, em artigo de jornal intitulado “Um Tremendo Disparate” publicado no ano passado, expressado o meu entendimento sobre o arranjo do Governo supostamente para reorganizar o sector público de comunicação social, prescindo, por ora, de aduzir qualquer outro comentário sobre o assunto. Prometo contudo, logo que tiver acesso ao documento, continuar a dar a minha contribuição para o debate deste dossiê complexo, se até lá, claro, não tiver sido aprovado pelo Governo. A continuar neste secretismo, está-se a proceder exactamente da mesma forma quando se criou a RTC, em 1997. Uma decisão política concretizada à margem e à revelia dos trabalhadores das então RNCV e TNCV. Dezoito anos depois desse casamento forçado, os resultados estão, absolutamente, aquém das expectativas traçadas pelo segundo Governo do MPD e também dos cabo-verdianos.

Ora, uma reforma como a que se apregoa e que deverá mexer, em princípio, com a orgânica, o funcionamento, a imagem de marca da RTC (que irá desaparecer) e com a própria identidade dos órgãos - no caso da agência noticiosa é tão certo ser engolida pelo parceiro mais forte da coligação -, não pode ser feita assim, a toque-de-caixa. Tratando-se de um processo complexo e bastante abrangente, ou não estivéssemos a falar do maior grupo de comunicação social do país, que emprega para cima de 350 trabalhadores, as soluções que vierem a ser adoptadas com vista a fusão das duas empresas, devem ser convenientemente ponderadas e debatidas, não apenas com trabalhadores da RTC e da Inforpress, mas também com os cidadãos, os principais financiadores do serviço público de rádio, televisão e de agência.

Ainda que se diga que não haverá despedimentos, convenhamos que mexidas de tamanho alcance e profundidade irão, com certeza, criar instabilidade e insegurança laborais de tal monta que terão reflexos negativos no desempenho dos jornalistas. É de todo incompreensível que o governo tenha mergulhado numa letargia confrangedora nos últimos quinze anos, em matéria de políticas públicas, visão estratégica e medidas que pudessem levar a uma melhoria do serviço prestado pela rádio, televisão e agência, e num rompante, a escassos meses das eleições, queira dar a ideia de que está a fazer alguma coisa neste sector. Embora este não seja ainda um governo de gestão, é evidente que levar avante uma restruturação do sector público mediático, quando a pré-campanha eleitoral já anda solta pela estrada fora, só pode ser entendido como uma manobra claramente para pressionar, condicionar e amaciar os jornalistas. É inevitável pensar nos estragos que a espada de Dâmocles pode causar de um momento para o outro.

A única vantagem imediata que até aqui conseguia vislumbrar no projecto de fusão da RTC e da Inforpress era a possibilidade de os jornalistas da agência, que ganham muito menos que os colegas da RTC, puderem ver os seus salários alinhados com os da rádio e televisão. De resto, essa era a única razão por que entendia a apatia, para não dizer conformismo ou indiferença, dos trabalhadores da Inforpress face à decisão do executivo de incorporar a agência na RTC, sabendo eles que a agência irá perder, a breve trecho, a sua identidade, acabando, inexoravelmente, por sucumbir. A propósito, em 2006, a ministra Sara Lopes, referindo-se ao estado de agonia em que se encontrava a Inforpress, sentenciou que o jornal Horizonte tinha comido a agência. Que dizer agora do futuro casamento com a maior empresa de comunicação deste país? As vantagens, que nem mesmo o governo tem sabido expor, não são de molde a autorizar o projecto de fusão. 

Desengane-se, pois, quem já contava com uns trocados a mais na sua conta. É que a equiparação salarial não se fará no imediato, mas sim às pinguinhas e durante dois anos. Dito de outro modo, teremos na mesma empresa trabalhadores de primeira e de segunda. É que, segundo explicou o ministro, um salto desses, de uma assentada, representaria um encargo de quase 7 mil contos anuais no orçamento da E.C.C.I, SA, o que criaria algum embaraço à administração da futura empresa.


Já deu para perceber que o Governo arranjou todo esse abalo, mas não vai meter nenhum tostão furado nessa operação, antes pelo contrário. Estamos a falar de duas empresas, a RTC e a Inforpress, cuja situação financeira inspira cuidados de maior, atoladas em dívidas que já superaram de longe o capital social, e que não estão, sozinhas, em condições de investir na modernização tecnológica, na melhoria da qualificação dos seus profissionais e na qualidade do serviço que prestam cabo-verdianos. Pergunta-se: a quem interessa essa fusão? Estamos perante mais um acto de ilusionismo, de faz-de-conta, e de chutar para a frente, claramente.