terça-feira, março 26, 2013

Voltamos já


Desde a sua criação, a televisão pública cabo-verdiana sustenta-se em, pelo menos, dois pilares extremamente frágeis, situação que tem debilitado a prestação de um serviço público de referência e de qualidade. Em relação ao princípio  da independência face ao poder político, o meio nasceu por pressão e interesse do Governo, que era quem definia as regras de funcionamento e fixava as modalidades do seu financiamento.

De acordo com o Decreto-lei nº 136/84, de 31 de Dezembro, o secretário de Estado estava incumbido de “definir as linhas gerais de actuação; dinamizar e controlar a actividade  dos órgãos colegiais  e os serviços da TEVEC; nomear, contratar, promover, exonerar e demitir  o pessoal da TEVEC  e rescindir os respectivos contratos; autorizar a realização de despesas  de valor superior a cem mil escudos, aprovar os programas e relatórios  de actividades, bem como os orçamentos de despesas e as respectivas  contas anuais.

Essas orientações estavam, de resto, em sintonia com a visão do regime em relação à comunicação social que, conforme a Constituição da República, era propriedade do Estado. A nova lei de imprensa que viria substituir o decreto lei nº 27495, de Janeiro de 1937, portanto, uma herança do Estado Novo, assume o princípio segundo o qual o Estado reserva para si, “nesta fase histórica da consolidação da independência e das instituições da República, da unificação do território insularmente disperso e do reforço da unidade nacional”, o exclusivo de alguns meios de imprensa (rádio, televisão e agência noticiosa), tendo em conta o seu papel na informação e educação das populações, na formação da opinião pública, o seu poder na transmissão de valores e, enfim, a sua força mobilizadora.

A autonomia, outro pilar incontornável para a garantia da sustentabilidade da televisão pública, condição imprescindível para que pudesse manter o necessário distanciamento em relação às fontes de financiamento e uma  efectiva independência face ao poder político, foi desde sempre negligenciada, talvez porque se levantassem outras prioridades. A verdade é que a debilidade financeira está na origem de vários constrangimentos que a televisão conheceu desde Março de 1984, o que terá impedido um substancial investimento na qualificação dos recursos humanos e na produção de conteúdos. A falta de recursos financeiros foi também responsável, ainda que de forma indirecta, por algumas paralisações da emissão, tendo a mais  longa decorrido entre Fevereiro e Novembro de 1988, nove meses que deixaram angustiados os cabo-verdianos.

Numa intervenção na Assembleia Nacional, o então ministro da Informação e Desporto explicava que a suspensão da emissão era motivada pela deficiente recepção do sinal da TEVEC em vários pontos do país, esclarecendo que tal se devia a falta de energia e de meios financeiros. “Os emissores instalados no ano passado (86) no Monte Tchota estavam a trabalhar a metade da sua capacidade por falta de energia suficiente que garanta a utilização plena de toda a potência desse emissor. Para além disso havia o atraso na chegada de alguns equipamentos da França, que deveriam ter chegado em Março, mas que até este momento (Julho) ainda não tinham chegado. É um problema de meios financeiros, para chegarmos e comprarmos. Temos que esperar pela cooperação”.

A paralisação forçada das transmissões vai ter consequências negativas na depauperada tesouraria da estação, porquanto deixa de poder contar com as receitas advenientes da publicidade e com a contribuição dos telespectadores, recebendo apenas o subsídio do Estado que, conforme David Hopffer Almada, mal dava para suportar as despesas com o pessoal. Esta situação financeira “grave mas não desesperante”,  fez com que não se cumprisse grande parte dos planos previstos para a produção de programas nacionais que, segundo a direcção da TEVEC, previam a participação de colaboradores permanentes, personalidades  ligadas a sectores específicos da vida nacional, tais como economia, história, entre outros, embora se continuasse a garantir a cobertura de acontecimentos de maior relevância do ponto de vista informativo, até à realização de um ou outro programa de maior envergadura.

Os parceiros de desenvolvimento do país, a quem se deve, em grande medida, a concretização do sonho de se ter nestas ilhas uma televisão, ainda que experiemental, mostraram-se sempre disponíveis a apoiar em vários domínios e fases de consolidação do projecto, com destaque para a formação dos quadros. Como fez questão de esclarecer a comissão administrativa do canal público, constituída por João Pires, Filipe Correia de Sá, José Augusto Brito, Artur Teixeira e Carlos Tavares, “a programação da TEVEC depende em grande parte da cooperação com estações de televisão, tais como a RFI da França, TV Globo do Brasil, a RTP de Portugal, TPA de Angola, a Transtel da RFA, a USIS dos Estados Unidos, a TV Sovietica.” A parceria englobava ainda vários organismos das Nações Unidas, assim como as missões diplomáticas acreditados no nosso país.

É, por exemplo, graças à cooperação francesa que, em 1988, iria entrar em funcionamento o novo estúdio da TEVEC, vocacionado para a produção de programas infantis, pequenas séries, teatro e várias outras ofertas de entretenimento. Um salto qualitativo que iria obrigar a formação de técnicos em áreas de criação ou de apoio artístico, como sejam a cenografia, a iluminotecnia e outros domínios de especialização televisiva.

A França viria, posteriormente, em Fevereiro de 1990, a oferecer à televisão cabo-verdiana uma antena parabólica, permitindo a estação receber quatro horas diárias da programação da CFI, incluindo desenhos animados, programas educativos, filmes, música e notícias. A TEVEC contava começar a emitir esses conteúdos a partir de Março desse ano, altura em que esperava ter já recebido os equipamentos necessários para a legendagem dos programas. Com apoio da cooperação portuguesa, previa-se para 1988 a instalação de uma unidade de montagem em S. Vicente, que deveria mais tarde evoluir para um centro de produção. Ora, é precisamente da delegação do Mindelo, o primeiro tele-filme de produção nacional emitido pela televisão experiemental. Rodado na ilha do Monte Cara, “Serenata sem Luar”, da  autoria do realizador João Gomes, aborda a vivência comum da festa, do dilema do amor, com imagens do quotidiano mindelense como pano de fundo.

Analisando a oferta de conteúdos disponível em 1989, constata-se que já existe uma alguma preocupação com a abrangência e a diversidade, visando atender parte das exigências dos telespectadores.  No dia 13 Julho, uma quinta-feira, a programação da TEVEC era a seguinte: Desenhos animados; Curso de Francês – nº 1;  Música Nacional; Telejornal; Reportagem – Sal; Cambalacho 24; Desporto; Último Jornal. 

Quanto aos telespectadores, alguns não se coibiam de mostrar a sua satisfação pelas melhorias  na recepção do sinal. Conforme dá conta um telespectador do Tarrafal de S. Nicolau, em artigo de opinião inserto no jornal “Voz di Povo”, “as emissões tanto da RNCV como da TEVEC chegam em S. Nicolau em boas condições, salvo raras perturbações registadas  na propagação da imagem. A população da nossa vila do Tarrafal ficou muito contente porque com a colocação de um retransmissor no Monte Verde em S. Vicente, passou a desfrutar de melhor imagem televisiva. Por sua vez, a população da vila da Rª Brava, que há seis meses não recebia mantenhas das outras ilhas, via TEVEC, viu reatadas as suas relações com esse órgão na véspera da chega do papa a Cabo Verde.” Mas há quem, embora reconhecendo os progressos técnicos introduzidos na estação, chame atenção para a necessidade de a “notícia ser objectiva e indiscutivelmente de primeira mão, a mais fiel portanto. Houve melhorias e muitas mas ainda não se consegue sempre tratar com a devida delicadeza e cuidado as notícias, facto esse recentemente confirmado pela imprecisão que “ o Presidente da República deixará amanhã o país com destino a S. Vicente”, ou quando se confunde a RENAMO (bandidos armados moçambicanos) com a FRELIMO.” Como uma bola de neve, a televisão foi traçando o seu percurso, adquirindo, graças aos melhoramentos tecnológicos, maior dinamismo e níveis de qualidade satisfatórios.