sexta-feira, março 21, 2014

Um tremendo disparate

O Governo parece determinado em juntar, numa única empresa, os órgãos públicos de comunicação social. Um primeiro passo para a concretização desse projecto foi dado esta semana com a nomeação de um gestor único para a Agência Cabo-Verdiana de Notícias, cuja carta de missão, se existe, não é do domínio público. E isto é o mínimo que se pode exigir, pois estamos a falar da gestão de um órgão que presta um serviço público de informação aos cabo-verdianos. De resto, um bem essencial a qualquer sistema democrático.

O executivo escora a sua opção pela figura do gestor executivo único na lei nº 47/VII/2009, de 7 de Dezembro, que estabelece o regime do sector empresarial do Estado, e nos artigos 15º e 16º da Resolução nº 26/2010, de 31 de Maio, que aprova os princípios do bom governo das empresas do sector empresarial do Estado. Entretanto, convém recordar que por Decreto Regulamentar nº 4 de 24 de Abril de 2000, o Governo adaptou os estatutos da Inforpress E.P. às Novas Bases Gerais das Empresas Públicas. A agência transformou-se em sociedade anónima (de capitais públicos), passando a gestão a ser exercida por um Conselho de Administração. Por conseguinte, “a intervenção do Governo na empresa deixa de se fazer pela via tutelar, passando a sê-lo através de uma Assembleia Geral e de um Conselho Fiscal” (Correia, 2011).

Talvez por ser leigo – mas não estulto – em matéria jurídica, ainda não consegui perceber como é que um gestor pode, sozinho, exercer as competências de um conselho de administração, um órgão colegial, que, no caso da agência, era até aqui composto por três pessoas. Embora o Governo não o admita, estamos a assistir ao regresso dos directores gerais nas empresas públicas de comunicação social. Ou seja, para perpetuar a governamentalização da gestão das empresas públicas de comunicação social, o executivo é capaz de desencantar leis feitas à medida. Já agora, se é possível gerir a agência com apenas uma pessoa, o Governo está a admitir que andou estes anos todos a desbaratar, de forma consciente, o dinheiro dos contribuintes com pelo menos três administradores. É caso para perguntar, porque não estender esse modelo de gestão a solo também à RTC? Sempre se poupavam umas centenas de contos.

Adiante. Ao contrário do que se possa pensar, a ideia da criação de uma holding não é de hoje. Em entrevista à TCV, em Maio do ano passado, o ministro da tutela, perguntado se havia algum projecto para a fusão da RTC e da Inforpress, afirmou que caso os estudos de que dispunha o governo apontassem nessa direcção, o projecto avançaria, sempre no intuito de racionalizar os recursos; de fortalecer os órgãos de comunicação social; de garantir uma maior fluidez de informação e de garantir um maior acesso dos cidadãos à informação. Portanto, sempre há estudos, só que estão nalgum sítio esconso do palácio da Várzea.

Tirando as frases feitas, o que se conclui é que o próprio governo não sabe ao certo quais vão ser, na prática, os ganhos resultantes dessa fusão. Seria oportuno explicar aos cabo-verdianos (que são quem no fundo suporta os custos de funcionamento do serviço público) quais as sinergias que irão resultar desse casamento forçado. Ouve-se dizer, por exemplo, que assim, pelo menos, quando um jornalista da agência sai em reportagem pode ir à boleia com os colegas da RTC. Só o desconhecimento da história, organização e funcionamento de uma agência permite semelhante disparate.

As transformações políticas e económicas, aliadas aos avanços tecnológicos, que marcaram o início do séc. XIX, onde se despontam a revolução industrial; o fim do absolutismo, e o consequente abrandamento da censura; a invenção e a instalação de grandes malhas internacionais de telecomunicações e de transporte (telégrafo e a ferrovia); a procura de informação transcontinental devido a integração das nações emancipadas das américas na economia mundial, são alguns dos factores que explicam o surgimento das agências noticiosas.

Elas são definidas pela UNESCO (1953) como sendo “empresas que têm como objectivo procurar notícias, de uma forma geral documentos de actualidade, tendo exclusivamente por motivo a expressão ou a apresentação de factos e a sua distribuição a um conjunto de empresas de informação, a particulares, com o fim de, mediante pagamento em prazos fixos e de acordo com as leis e costumes comerciais, lhes assegurar um serviço de informação completo, imparcial quanto possível”. E assim tem sido desde que Charles-Louis Havas (1835) teve a brilhante ideia de transformar o seu escritório de tradução numa agência que passou a dedicar-se à procura de informações (cotações de mercadorias e matérias-primas, previsões de colheitas, questões tributárias, questões políticas, etc.), normalmente na imprensa estrangeira, que eram depois traduzidas e vendidas aos jornais franceses. 

As agências assentam a sua missão em princípios como a independência, a objectividade, a actualidade e a credibilidade, só para citar estes, o que pressupõe uma maior esfera de autonomia. A sua acção é caracterizada pela rapidez na recolha e na elaboração dos conteúdos. Elas estão onde não estão os outros media, quer por limitações financeiras (nem todos os órgãos podem dar-se ao luxo de ter correspondentes e enviados especiais em todos os concelhos, em todas as ilhas do país, e muito menos no estrangeiro), quer devido a estratégias de cobertura informativa. Portanto, devem estar sempre um passo à frente na procura da informação em relação aos outros meios de comunicação social.

Juntar a Inforpress e a RTC numa única empresa (mesmo que só a nível da gestão) é ignorar as especificidades desses dois meios, metendo no mesmo saco o fornecedor e o cliente. Para já, uma das consequências dessa asneira será, a breve trecho, a diluição da confiança no serviço prestado pela agência, contribuindo para o seu desaparecimento. Vejamos um caso prático: neste momento colaboram com a RTC, mediante remuneração, dois jornalistas da Inforpress. Têm por obrigação contratual, mas também ética, disponibilizar em primeira mão à agência as informações recolhidas, e só depois enviá-las à RCV. De outro modo, ninguém iria comprar uma notícia que já passou na Rádio Nacional. Quando as duas empresas forem uma só, como é que será?

No final do ano passado, eu e uma colega jornalista da agência fomos a Bruxelas acompanhar a visita do chefe do Governo. Desdobrei-me no envio de peças para a RCV e para TCV; ela enviou os seus despachos para a Inforpress, o que permitiu que fossem retomados por todos os outros meios de comunicação social que, como é evidente, não puderam deslocar-se à Bélgica. Com a fusão, mantém-se o mesmo esquema de cobertura internacional ou vai só um jornalista dessa holding? E nesse caso, o repórter fará cobertura para os demais órgãos, numa espécie de pool jornalística? São questões práticas que vale a pena equacionar.

Importa lembrar que os argumentos para a criação da RTC em 1997, processo que resultou da fusão da RNCV e TNCV, foram praticamente os mesmos que estão agora a ser propalados. “A empresa foi criada para funcionar como uma estrutura de custo de funcionamento que lhe permitisse folga para apostar no investimento, designadamente nas suas infra-estruturas e nos equipamentos. Muitas das promessas no acto da criação da RTC não foram cumpridas…” (Reis, 2007). O projecto visava, sobretudo, explorar as complementaridades e sinergias entre a rádio e a televisão públicas, um objectivo que está muito longe de ser alcançado, pelo menos em níveis minimamente satisfatórios.
 
O Governo socorre-se do plano estratégico da comunicação social para justificar a sua decisão, pelos vistos irreversível, de juntar a RTC e a Inforpress. Com efeito a constituição de uma holding é uma das soluções propostas pelo estudo. O consultor recomenda, no entanto, a realização de estudos conducentes à criação dessa entidade que englobará todo o sector empresarial do estado, permitindo a rentabilização dos recursos e as sinergias necessárias em termos de funcionamento e de gestão. No essencial, o plano de acção identifica necessidades prementes de investimentos ao nível da modernização tecnológica e da qualificação dos recursos humanos, para que a agência possa prestar um serviço público de qualidade aos seus clientes.
Mas mais: pede que se reavalie o peso do Estado no funcionamento da agência e que se pondere um modelo de privatização da mesma. Ainda ninguém conhece os estudos que o governo diz possuir e que, ao que parece, advogam a constituição de uma empresa única. De todo o modo, o próprio estudo elaborado pelo Dr. Rui Barreiro pede que se analisem, através do benchmarking, modelos de funcionamento, de negócio e de governação de agências congéneres de referência como a Lusa, a AFP, a Reuters e as dos países africanos que possam servir de exemplo a Cabo Verde. Não acredito que este trabalho tenha já sido feito.

Um outro aspecto importante que tem sido propositadamente sonegado na discussão (ou melhor na imposição) desta reestruturação prende-se com o modelo de financiamento da Agência Cabo-Verdiana de Notícias. O plano estratégico da comunicação social é taxativo neste particular ao dizer que “é urgente definir um contrato de objectivo e de meios com o Estado, como é feito noutros países, no sentido de dotar a Inforpress dos recursos financeiros necessários ao seu desenvolvimento. Desde que não seja um contrato de concessão como o que foi assinado entre o Governo e a RTC… uma verdadeira operação de soma nula.


segunda-feira, março 10, 2014

A morte anunciada da ARC

Ainda não consegui perceber muito bem por que razão a presidente da AJOC se mostra tão surpreendida pelo facto de os jornalistas terem sido ignorados na composição da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social. Quem acompanhou com alguma atenção o processo de criação da ARC ter-se-á apercebido que desde o início da constituição dessa entidade, a intenção dos dois maiores partidos políticos foi a de impedir que os jornalistas tivessem uma palavra a dizer no seio do órgão que, em princípio, vai regular a actividade desenvolvida pelos media nacionais. Em abono da verdade, importa ressalvar que a proposta de lei inicialmente submetida ao parlamento pelo Governo destinava dois assentos aos jornalistas, para cuja eleição deveriam sujeitar-se à logica político-partidária (ainda que num quadro parlamentar) que tem marcado a escolha dos membros.

Pelo que retive do calor dos debates, essa ideia de ter os regulados dentro do regulador nunca foi do agrado do maior partido da oposição. No entanto, para o MPD era impensável que do rol de competências da futura Autoridade Reguladora não constasse a de emitir, suspender e revogar licenças de emissão às operadoras de rádio e televisão. Lembro-me de ter ouvido a deputada Eva Marques, na declaração de voto, afirmar que o seu partido tinha votado formalmente o diploma porque reconhecia a importância de uma entidade reguladora independente para o sector da comunicação social, mas que, ainda assim, o partido iria levar uma série de propostas para a comissão especializada para eventuais entendimentos com o partido que sustenta o Governo, o que poderia ditar a votação final.

Desconheço os meandros das negociações havidas nessa tal reunião da comissão especializada, mas julgo que o que terá acontecido foi, basicamente, um conluio entre os dois partidos. Explico-me: o PAICV, que suporta o governo, deixou cair a obrigatoriedade da presença de jornalistas no órgão regulador; o MPD, por seu turno, abdicou da exigência de se dotar o conselho regulador de competências para o licenciamento dos canais de rádio e televisão. Um recuo que, está visto, enfraquece a entidade reguladora, uma vez que esse poder, usado, por vezes, de forma discricionária, ficou nas mãos do Governo, através da Direcção Geral da Comunicação Social. Neste momento o que se assiste é uma manobra de transferir estas competências para a ANAC, agência que se prepara para acolher, em breve, os quadros e o fiapo de atribuições da DGCS.

Aquando do debate no parlamento, o ministro da tutela, confrontado com esta questão, respondeu muito candidamente, como se isto fosse uma coisa de somenos, que de entre os múltiplos modelos de regulação da comunicação social existentes por este mundo fora, Cabo Verde adoptou um. Ora, não é preciso ser jurista para ver que o estatuto da nossa ARC é uma cópia à letra do estatuto da ERC portuguesa. Faço, contudo, notar que desse meticuloso labor jurídico, foram ignoradas duas normas que são o fulcro de toda e qualquer acção regulatória neste campo. Atentemo-nos ao que diz a lei da Entidade Reguladora para a Comunicação Social no concernente às competências do conselho regulador: Atribuir os títulos habilitadores do exercício da actividade de rádio e de televisão e decidir, fundamentadamente, sobre os pedidos de alteração dos projectos aprovados, os pedidos de renovação daqueles títulos ou, sendo o caso, sobre a necessidade de realização de novo concurso público (art.º 24, e)”. As competências da ERC saem ainda mais reforçadas, pois os estatutos permitem-lhe “aplicar normas sancionatórias previstas na legislação sectorial específica, designadamente a suspensão ou revogação dos títulos habilitadores do exercício da actividade de rádio ou televisão…” A nossa ARC viu-se amputada, cirurgicamente, do importante poder de atribuir licenças aos operadores de rádio e televisão, tendo-lhe sido apenas permitido “pronunciar-se previamente sobre o objecto e as condições dos concursos públicos para a atribuição de títulos habilitadores do exercício de actividade de rádio e de televisão”.

É inacreditável que o Governo não tenha tirado as devidas ilações da confusão criada em 2007 aquando da abertura do mercado televisivo a operadores privados. As críticas sobre a forma pouco transparente como decorreu o concurso fazem-se sentir até hoje, legitimadas, aliás, pela prestação sofrível dos novos canais televisivos. Mas mais, basta analisar as competências dos principais reguladores dos media por este mundo fora, nomeadamente, a Federal Communications Comission (FCC), dos EUA, o Conseil Superieur de l’Audiovisuel (CSA), da França, a Autorità per le Garanzie nelle Comunicazioni, da Itália, o Office of Commucations (OFCOM), da Inglaterra, e a ERC, de Portugal, para se constatar que todos são responsáveis pelo licenciamento da actividade das estações de rádio e televisão. Só o desejo de controlar os media, justifica essa estratégia de viés centralizador.

Voltemos à ausência dos jornalistas no órgão regulador da comunicação social. Sabe-se que a AJOC indicou aos deputados encarregues das negociações com vista à composição da Autoridade Reguladora alguns jornalistas que, na óptica da direcção do sindicato, detêm o perfil adequado para integrar a ARC. A lista foi, por e simplesmente, ignorada. Ora, se é certo que a lei que acabou por ser aprovada no Parlamento não se refere explicitamente à participação de jornalistas na composição do órgão, também não é menos verídico que não existe qualquer interdição à presença dos profissionais da comunicação social. Dizem então os estatutos: “o conselho regulador é composto por cinco personalidades eleitos pela Assembleia Nacional de entre pessoas com reconhecida idoneidade, independência e competência técnica e profissional, com mais de cinco anos de experiência…” (art.º 14, nº1). Não me digam os srs. políticos que não há neste país nenhum jornalista que preencha esses requisitos! Há de haver outra razão indizível que os leva a esconjurar a participação de jornalistas no exercício da regulação. Um dos argumentos é o infundado receio de o regulador ser capturado pelos regulados. Que poder (já agora, com que interesses) tem um ou dois jornalistas para inquinar ou obstaculizar a tomada de decisão dentro da Autoridade Reguladora?
 
Por princípio, não me simpatizo muito com o estabelecimento de quotas de participação de jornalistas, seja em que instância for, mormente no conselho regulador da comunicação social, quanto mais não seja por se tratar de um vasto e diversificado “mercado de ideias”, que se alarga constantemente mercê da convergência tecnológica. Não sendo os únicos actores do panorama mediático, os jornalistas jogam nele, no entanto, um papel central na promoção e defesa do direito constitucional do cidadão à informação. Eles, mais do que ninguém, conhecem por dentro a organização e as condições de produção informativa, pelo que não podem ficar de fora do modelo de hétero-regulação que se quer instituir. 

Já que é na ERC portuguesa que fomos beber, ou melhor, copiar, importa conhecer quem são os actuais membros que compõem essa entidade administrativa independente. A Dra. Raquel Alexandra foi jornalista na SIC desde a sua fundação (1992-2011) e integrou sempre a sua Editoria de Política. Passou por várias rádios e jornais. É Vogal do Conselho Regulador, desde 9 de Novembro de 2011. Portanto, quando foi convidada para integrar a ERC exercia o jornalismo. O Dr. Rui Alberto Gomes é licenciado em Comunicação Social pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1983). Possui ainda o Curso de Jornalismo de Rádio do Centro de Formação da RDP. Iniciou a sua actividade na comunicação social, em 1982, enquanto jornalista na Revista de Informática. Seguiram-se experiências na RTP (1984), Rádio Comercial (1985-87), revista Grande Reportagem (1986-87) e na Televisão e Rádio de Macau (1987-1990). Entre 1990 e 1995, integrou a TSF como repórter e editor de Política Nacional. O vice-presidente, o Dr. Alberto Arons de Carvalho, é especialista em direito de comunicação, foi deputado e Secretário de Estado da comunicação social. É autor de sete livros (três deles em co-autoria) sobre matérias relativas ao Direito e à política de comunicação social. O próprio presidente da ERC, o Dr. Carlos Magno, é licenciado em jornalismo pela Escola Superior de Jornalismo do Porto. O seu percurso no jornalismo iniciou-se na Rádio Universidade. Já na RDP, especializou-se em política, enquanto repórter. Nos anos que se seguiram, assumiu o cargo de Director-Adjunto de Informação da Antena 1, foi Editor do Expresso, no Porto, durante 10 anos, onde fundou a TSF. Esteve também na Direcção do Diário de Notícias e fundou o canal de televisão por cabo que deu origem à RTPi. Dos cinco membros que compõem a Entidade Reguladora para a Comunicação Social portuguesa, apenas a deputada, Luísa Roseira, não possui, pode dizer-se, qualquer ligação directa com os media.
Pergunto: por que é que há-de ser diferente em Cabo Verde? Dizer que os jornalistas que estão não activo não podem integrar a ARC é uma falácia. Basta que o jornalista convidado deposite a sua carteira na Comissão de Carteira para desaparecerem as eventuais incompatibilidades neste sentido. Estamos com a AJOC neste combate em prol de uma Autoridade Reguladora verdadeiramente independente e autónoma, que não seja capturada pelos interesses partidários.