Compreender a
televisão que se faz actualmente e os desafios que se lhe colocam na nova
configuração da paisagem mediática nacional – à beira de se completar 29 anos
desde que se iniciaram as emissões experimentais daquela que é hoje a televisão
pública – requer um recuo no tempo e na história, procurando identificar e
interpretar as marcas da evolução deste incontornável meio de comunicação de
massas.
Neste exercício,
modesto, de recolha de subsídios para a história de televisão nestas ilhas,
torna-se imperioso destacar o contributo emprestado por inúmeros cidadãos
apaixonados pela magia da “caixinha mágica”, muito antes de os cabo-verdianos
terem conquistado o direito de assumir os destinos da nação nas suas mãos.
Na ilha de S.
Vicente, onde a rádio conhecera um grande dinamismo fruto do empenho de alguns
“carolas”, não obstante as primeiras emissões terem surgido na Praia, graças ao
empenho e dedicação de Manuel Tomaz Dias, funcionário da Marconi, as
experiências pioneiras em matéria de televisão devem-se ao português Chibeto
Faria, gerente do Banco Ultramarino, por volta de 1969.
Segundo
Djibla (Ponto & Vírgula), esse cidadão carregava, de burro, baterias e televisores
para o Monte Verde, onde captava as emissões de Dakar e Canárias. Assim que a
novidade foi conhecida, as pessoas da cidade organizavam autênticas romarias para
o “verde”, fazendo-se acompanhar de antenas e receptores para assistir aos desafios
internacionais de futebol. Quando a estrada de acesso ao monte foi construída,
contavam-se às dezenas o número de automóveis que, abarrotados de gente, para
lá se dirigiam para ir ver a montra do futebol mundial.
Como
forma de levar as imagens captadas às casas das pessoas na morada, Djibla e outros entusiastas instalaram no Monte Verde um
retransmissor comprado em França. “Como havia na cidade um grupo com vídeo que
recebia cassetes de Lisboa – Mário Leite, Julinho Siminhas, etc., e que as suas
casas estavam sempre abarrotadas de gente, às vezes até 50 pessoas à volta de
um televisor, pensamos em emitir, fundando para isso, “Os Amigos da TV”.
Decidimos procurar informações sobre emissores de TV. Um Eng.º da PHILIPS
arranjou-nos um sistema de amplificação de sinais que instalamos na casa do
Galeano. Aí nasceu a TV Galeano ou a TV Supirinha.”
Com o apoio de
muita gente foi construída no Monte Gudo um pequena casa, onde se instalou um
amplificador que permitia que o sinal da emissão cobrisse, em perfeitas
condições, praticamente toda a cidade. Resolvida a questão da captação e
transporte do sinal, os responsáveis da televisão começaram a produzir pequenos
conteúdos de interesse local, cuja qualidade esperavam melhorar com a aquisição
de um misturador. Grande parte dos programas emitidos pelo “Vídeo Clube de S.
Vicente”, como também era conhecida a televisão amadora do Mindelo, provinha de
gravações feitas das emissões da RTP, como telenovelas, filmes e outros conteúdos
educativos.
Infelizmente
esta iniciativa comunitária, que não tinha qualquer outro interesse que não o
de entreter as pessoas, viria a ser, de forma prematura, interrompida por
decisão do Governo, com o argumento de que estava a trabalhar num projecto para
a criação da televisão pública. Nem mesmo o argumento da falta de alternativas
para a recreação e o lazer na ilha e no país demoveu as autoridades dessa
decisão, mais uma, diga-se, visando cercear a liberdade de expressão dos
cidadãos, um dos semblantes do partido único.
Nenhum dos “Amigos da Televisão”
em S. Vicente terá sido integrado no processo de instalação da televisão
nacional e, como se não bastasse, o Governo assenhoreou-se dos equipamentos e
da estrutura existentes por iniciativa dos cidadãos. “O secretário de Estado
disse-nos que o emissor da TEVEC teria que ficar ali no Monte Gudo, onde
existem as instalações do VC. Não foi bem entrar em negociações. Houve quase
que, digamos assim, uma entrega dessas instalações: da casa, das antenas e do
cabo e isto vale ainda umas boas centenas de contos. Isso foi uma forma de
mostrarmos a nossa boa vontade, o nosso propósito em colaborar com a TV oficial”
(Entrevista: Julinho Siminhas, P&V). ”. A última emissão do Vídeo Clube de
S. Vicente foi no dia 31 de Março de 1984, poucos dias depois do arranque da
televisão experimental.
Também na cidade
da Praia as emissões televisivas remontam ao período anterior à independência
nacional, em 1975. A experiência pioneira de transmissão do sinal de televisão
coube ao radiotelegrafista, Hilário Brito. Devido a escassez de televisores, as
primeiras imagens do mundo foram captadas no Monte Chota, onde existia uma
antena de recepção colocada pelos portugueses e um receptor de antena portátil
que possibilitava o acesso às imagens em sítios de maior altitude. Com a
instalação de um retransmissor na sua casa, na rua 5 de Julho, no Plateau,
Hilário difundia para a cidade a emissão que captava directamente do Monte Chota.
Não havia nenhum compromisso com a audiência no que diz respeito à programação e
o horário de difusão. A oferta de conteúdos consistia em imagens esporádicas de
telenovelas, séries e documentários, conforme permitissem as condições atmosféricas.
Quando era deficiente a propagação do sinal das ilhas Canárias, a TV Hilário
preenchia o espaço com telenovelas brasileiras gravadas em Portugal, sendo a
primeira “Dona Xepa”.
Apesar do carácter
irregular das emissões, havia um certo entrosamento com o público que, às vezes,
manifestava a sua opinião ou preferência por determinado conteúdo. “Na época,
era enorme a recepção por parte do público, que muitas vezes programava o seu
tempo pelo horário das transmissões. “As pessoas ficavam tão entusiasmadas que,
se houvesse uma festa importante na hora da telenovela, vinham solicitar-me que
interrompesse a emissão para que não a faltassem” (Olinda, 2000:8).
Ao contrário do
Vídeo Clube ou da TV Djibla, em S. Vicente, não consta que a TV Hilário tenha
sido pressionada pelo Governo de então para encerrar as suas emissões. Talvez
porque como explicou em entrevista à jornalista Joana Olinda Miranda (1999)
nunca teve produção própria, não realizava programas e jornais informativos, e
nem transmitia propagandas de cunho político ou religioso. Uma outra explicação
plausível para o regime ter tolerado as emissões do Hilário Brito, que tão-pouco
possuía licença de emissão, nem direitos autorais dos conteúdos internacionais,
tem que ver com o facto de o seu público-alvo serem pessoas de alta sociedade,
sobretudo da política e do sector económico-financeiro, como recorda o jornal
Horizonte (Évora, 2012). Aliás, como o mesmo conta, houve um ex-ministro da
Justiça que lhe disse que foi no seu portão que viu a televisão pela primeira
vez. Graças à sua competência técnica e conhecimentos em matéria de televisão,
Hilário Brito viria a ser convidado para coordenar o processo de instalação da
televisão experimental de Cabo Verde.
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