Diz o povo na
sua insondável sabedoria que “há males que vêm por bem”. A crise que se abateu
sobre a RTC é motivo bastante para se colocar, definitivamente, a questão do
serviço público de rádio e televisão no centro das prioridades. Não me refiro a
debates estéreis e nem tão-pouco a fóruns pomposos, cujos resultados, na maior
parte das vezes, são remetidos a um canto esconso de uma qualquer gaveta. Estou
a falar de uma ampla e profunda reestruturação do operador público, que torne mais
eficiente a organização, reduzindo os custos e aumentando a produtividade. Isso
só será possível através de uma gestão e administração modernas, assentes numa
contabilidade industrial, em planos de curto e médio prazo e sujeitas a um
apertado controlo de gestão.
Não dispor de
liquidez para cumprir as obrigações legais para com os trabalhadores, só prova
que a RTC está à beira de uma tripla crise: de identidade, de funcionamento e
de financiamento. Urge pois clarificar a missão de serviço público, reformar a
sua forma de governo, de gestão e de financiamento.
José António dos Reis, um dos responsáveis pela criação da
RTC, considerava em 2007 que a empresa foi formatada para funcionar com uma
estrutura de custo que lhe permitisse investir nas infra-estruturas e nos
equipamentos. O ex-ministro da tutela da comunicação social recordava que
muitas promessas feitas no acto da criação da Rádio Televisão Cabo-Verdiana, em
1997, não foram cumpridas. Cita à laia de exemplo: “a assinatura de um
contrato de prestação de serviço público que reflectisse a exigência de uma
programação de qualidade, a par de uma adequada indemnização compensatória; um
novo edifício para a televisão, com outras condições de trabalho e mais
condizente com a missão que se atribui à RTC; uma gestão rigorosa, baseada em
objectivos precisos, quer em termos económico-financeiros, quer em termos de
valorização de recursos humanos; desenvolvimento de comportamento empresarial
com enfoque para a cultura de resultados” (2007).
Ou seja, o próprio Estado tem negligenciado o imperativo
constitucional que o obriga a assegurar “a existência e o funcionamento do
serviço público de radiodifusão e televisão” (art. 60º, nº 9). Trata-se de
uma garantia permanente aos cidadãos, às suas organizações e às mais variadas
instituições, de que o pluralismo, a diversidade informativa e a cobertura da
realidade e das iniciativas das comunidades, em todo o país e na diáspora, são
assegurados. Por isso, não se entende como é que uma dimensão tão importante
para o reforço da cidadania e da democracia esteja arredada do discurso que
hodierno se faz da reforma do Estado.
Importa esclarecer, antes de mais, que a questão do
financiamento não se esgota na arrecadação de verbas suficientes para o
desenvolvimento das actividades da rádio e da televisão. A origem desses
montantes, a sua dimensão e as diversas modalidades de que se reveste, podendo
condicionar a independência do operador e o tipo de programação, são dimensões
relevantes que não podem ser menosprezadas na discussão desta matéria.
A RTC adoptou desde o início um modelo de financiamento
misto. Recebe mensalmente do Estado um subsídio de indemnização compensatória
de cerca de 4 mil e 100 mil escudos; receitas publicitárias; e o montante da
taxa de rádio e televisão cobrada juntamente com a factura da electricidade e
água, em torno de 20 mil contos mensais. Conclui-se que mais de 2/3 das
receitas totais da RTC (taxa e fundos públicos) provêm da contribuição dos
cidadãos. Este modelo está em linha com o que se passa em países como
Finlândia, Noruega, Dinamarca, Suécia, Republica Checa, Alemanha, Reino Unido,
Roménia, Suíça, Bulgária, Portugal e Hungria.
Em princípio, a diversidade de origem das fontes de
financiamento tende a favorecer a independência do operador público, porquanto
minimiza os riscos decorrentes da vinculação às receitas de uma única fonte. A
experiência europeia, onde nasceu o SPRT, demonstra o quão imprescindível é o
Estado assegurar um quadro seguro, previsível, apropriado, de preferência plurianual,
aos operadores.
Desde que surgiu a
RTC, há 15 anos, a contribuição do Estado, pelo menos sob a forma de
indemnização compensatória, mantém-se inalterada, estando hoje aquém das
necessidades de uma televisão que saltou das seis para as dezoito horas de
emissão diárias; de uma rádio que emite em dois canais e de um portal online.
Isso para não falar do aumento exponencial de recursos humanos e dos
investimentos necessários para a prossecução das actividades da
“concessionária”.
A taxa, principal fonte de financiamento da RTC, corre
sérios riscos de vir a desaparecer. Não obstante a sua actualização estar
indexada à inflação anual, o Governo contribuiu para a evasão que se assiste ao
pagamento desse “imposto” ao aprovar a lei de protecção dos direitos especiais
dos consumidores que tem servido de amparo a quem queira furtar-se a essa
comparticipação, sem ter que provar que não usufrui do serviço público de rádio
e televisão. A hemorragia dessa fonte de financiamento é grande e, caso não for
estancada, o Estado, mais tarde ou mais cedo, terá que compensar a RTC pela
perda de receitas.
Do ponto de vista de gestão, é altura de se ter uma
liderança mais sintonizada com a missão da empresa, assente na produção e
difusão de conteúdos de interesse público. Há que apostar na responsabilidade e
na avaliação. Tratando-se de uma empresa que gere dinheiros públicos, é
imperioso que a sua gestão seja eficiente e transparente, que os cidadãos
conheçam a utilização que se faz do seu dinheiro. Não basta apresentar os relatórios
de actividades e contas ao Governo. É imperioso publicitá-los. As reformas
inadiáveis decorrentes de um novo estilo de gestão só se materializarão no
âmbito de um contrato de concessão e de uma lei de reestruturação financeira.
Infelizmente essas medidas estruturais foram relegadas calendas crioulas.
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