Não bastasse ter espalhado os dez grãozinhos de terra no meio do imenso Atlântico, Deus bafejou Cabo Verde com uma única língua materna – o crioulo – falada pelo seu povo dentro e fora das ilhas. O crioulo é o principal traço de ligação e o melhor elemento identitário do cabo-verdiano. Embora existam pequenas diferenças dialectais entre as variantes de ilha para a ilha, os cabo-verdianos, em geral, entendem-se em crioulo, seja qual for a ilha de que seja oriundo o falante ou o seu interlocutor. Em qualquer parte do mundo em que se encontre, o cabo-verdiano pode falar a língua do país onde reside ou que o acolhe, mas, seguramente, fala a sua língua materna. Enfim, o que une, indelevelmente, os cabo-verdianos espalhados pelos quatro cantos do mundo é, antes de mais e sobretudo, a língua comum, a sua língua materna – o crioulo.
A Constituição da Republica de Cabo Verde diz, de forma explícita, que “a língua oficial é o português”. Garante ainda que “ o Estado cria as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Mas mais: segundo a Constituição, “todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las”.
Dos meios da comunicação social espera-se, não apenas a contribuição para a correcta formação da opinião pública e educação cívica dos cidadãos, bem como a promoção da democracia, mas também “a difusão da cultura e reforço dos valores e da identidade nacional”. (Lei nº 70/VII/2010). A lei da radiodifusão, revista e publicada no ano passado, obriga, ainda que de forma genérica, a concessionária do serviço público a “emitir programas regulares vocacionados para difusão da língua e cultura cabo-verdianas” (Lei nº 71 /VII/2010). Porém, uma coisa é o ordenamento jurídico, outra, diferente, é o desempenho e a importância que os media nacionais atribuem ao desidrato de promover e divulgar a língua cabo-verdiana.
O principal objectivo da imprensa escrita e dos media electrónicos, enquanto meios de propagação de informação no espaço público, é, sublinha Nelson Traquina, fornecer relatos dos acontecimentos julgados significativos e interessantes para a vida do homem na sociedade. Para isso, dois elementos desempenham um papel absolutamente importante: a imagem e a palavra.
Ao contrário da imprensa escrita em que o jornalista se vê obrigado a traduzir para o português as declarações (opiniões, sentimentos, factos, etc.) que uma fonte – por opção ou necessidade – tenha proferido em crioulo, na rádio os registos sonoros mantêm-se inalterados na lingua-materna, embora todo o texto esteja escrito em português. Portanto, parte-se do princípio que, do ponto de vista da oralidade, todo o cabo-verdiano entende a língua de Camões.
Embora não exista nenhuma norma escrita ou implícita que proíba o jornalista – em situação formal de comunicação - de usar o crioulo nos seus trabalhos jornalísticos, o que brigaria com o espírito da Constituição da República, existe quase que um consenso em como a comunicação em antena faz-se em português. Na frente informativa, existe em toda a grelha da programação da RCV um único espaço noticioso escrito e lido em kabuverdianu. Importa esclarecer ainda que o “Jornal Crioulo” praticamente nunca tem edição própria, vivendo, por isso, quase que exclusivamente da tradução de notícias saídas nos demais noticiários. Curiosamente, os registos sonoros em português das peças não são, por e simplesmente, usados. Quando muito, e tratando-se de um som importante, opta-se por transcrever no corpo da notícia o seu conteúdo. Já uma vez se aventou a possibilidade de dobragem do crioulo para a língua portuguesa, hipótese prontamente descartada pelos jornalistas, pois, alegaram, tratar-se-ia de uma formulação aberrante, uma vez que todo o cabo-verdiano entende o português.
Nos últimos tempos, algumas vozes críticas se têm feito ouvir quanto à real finalidade dessa (única) janela de informação no crioulo cabo-verdiano. Se sobre o operador público de radiodifusão impende a obrigação de promover e divulgar a língua materna, por que não fazê-lo respeitando as normas que já existem para a escrita do Kabuverdianu? Com efeito, não faz sentido que na elaboração dos textos que compõem esse jornal não se leve em conta o alfabeto (ALUPEC) - que vigora a título experimental - e muito menos os parcos instrumentos didácticos, como as gramáticas e os dicionários, frutos de vários anos de labor linguístico de investigadores que se preocupam, nomeadamente, com o perigo da descrioulização lexical. É que, como sublinha o antropólogo, João Lopes Filho, a linguagem é mais do que um meio de comunicação do pensamento. É, sobretudo, “um elemento estruturante fundamental do próprio acto de pensar, de ler e de percepcionar o mundo, ao ponto de a cosmovisão de um dado indivíduo ser programada pela sua língua”.
Acresce que o Jornal Crioulo nunca teve um corpo redactorial próprio. A sua “edição” foi, desde a sua criação, assumida por profissionais que, embora integrassem a redacção, não detinham o estatuto de jornalista profissional, ou, nalguns casos, por jornalistas estagiários em início de carreira, e até mesmo por secretárias de redacção. Houve até gente sem nenhuma ligação com o jornalismo a coordenar e a apresentar esse jornal. Ou seja, os jornalistas encaram esse espaço noticioso mais como um problema linguístico do que propriamente sujeito a normas e critérios de noticiabilidade. A impressão que se tem – há que dizê-lo - é que os jornalistas vêem na edição do “Jornal Crioulo” uma desvalorização do seu estatuto e prestígio profissionais.
Para se aquilatar dessa aversão, em 2007, depois de várias tentativas para sensibilizar os jornalistas no sentido de assumirem o espaço de informação na língua di terra, a direcção viu-se obrigada a lançar um concurso interno para apurar eventuais interessados, mediante a promessa de um subsídio de edição de 20 mil escudos (quase oito mil meticais). O único interessado foi um jornalista/animador e relator de futebol. Além dessas preocupações, há quem também questione – e com razão – o uso exclusivo da variante de Sotavento, tendo como expoente máximo a ilha de Santiago – na escrita e leitura desse serviço noticioso.
A este propósito, importa recordar que o primeiro colóquio linguístico realizado em 1979, na Cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, adoptou como referência a variante de Santiago como língua de base, e, portanto, também da escrita. Uma opção sustentada na altura não pelo facto de o crioulo de Santiago ser melhor ou pior, mas, porque, na opinião de alguns linguistas, nomeadamente, Baltazar Lopes da Silva e Dulce Almada, “a realização fonemática se aproxima em grande medida da estrutura da língua portuguesa”, além de que “é a variante falada por cerca de metade da população do país.”
Como para além da informação, a concessionária do serviço público de radiodifusão deve também assegurar na sua programação, que se deseja de referência, inovadora e de qualidade, a satisfação das necessidades culturais, educativas, formativas e recreativas dos diversos públicos, atentemos ao uso do crioulo nas demais faixas da programação.
À semelhança do que acontece com os noticiários e programas de grande informação (debates, entrevistas, grandes reportagens, etc.), os blocos de emissão e os programas de entretenimento são conduzidos na língua portuguesa. Contudo, sempre que o convidado se mostre interessado em falar crioulo, ou porque não se sente muito à-vontade no uso do português, ou porque pretende que a sua mensagem seja descodificada sem que suscite dúvidas (ruídos) no auditório, o jornalista adopta o mesmo código linguístico. Aliás, nos programas de variedades, existe sempre o hábito de se perguntar ao convidado se quer dirigir-se à audiência em crioulo ou em português. Há ainda casos em que o convidado começa a falar em português, faz uma incursão pelo CCV e termina o seu discurso em português. Sempre que essas deambulações - que indiciam já um bilinguismo - acontecem, o jornalista acompanha o seu interlocutor.
Quanto à participação dos ouvintes, quer nos programas de informação, quer nos de entretenimento, ela é, na maioria esmagadora dos casos, feita em crioulo. Portanto, os receptores ou destinatários a quem a mensagem radiodifundida se dirige, respondem, sempre que se lhes conceda uma oportunidade de interagir com o emissor, na sua língua materna. Um dado curioso, no entanto, é que as emissões especiais com carácter lúdico ou de diversão produzidas fora do ambiento do estúdio, com a assistência do público, são quase sempre feitas utilizando o Kauberdianu.
Apesar de não existir, tal como salientámos, nenhuma norma escrita, inserta no estatuto editorial, no livro de estilo ou mesmo no contrato individual de trabalho dos profissionais da rádio que os impeça de elaborar e apresentar os seus trabalhos jornalísticos em crioulo, notamos que estes se mostram pouco à-vontade e renitentes na utilização mais frequente da língua cabo-verdiana nas antenas da Rádio de Cabo Verde. Os jornalistas alegam que não foram alfabetizados no crioulo, por isso, não se sentem preparados para o escrever. Mas, há quem defenda tratar-se de um preconceito na utilização de uma língua que, à partida, consideram menor, que não concorre para a sua projecção e status social.
O argumento segundo o qual não se escreve o CCV porque é uma língua que não se aprende na escola é desconstruído por alguns linguistas, entre os quais, Manuel Veiga, um dos mais acérrimos defensores da dignidade do Kabuverdianu. Explica o ex-ministro da Cultura que “a melhor maneira de dominar a escrita do crioulo, não será pela via do português. Há que praticar essa escrita. Além disso se queremos desenvolver a nossa língua temos de servir-nos dela. Utilizando o português teríamos, com certeza, um público muito mais vasto, mas isto apenas para a informação. O uso do crioulo, pelo contrário, não só reforça a sua prática, mas contribui para a afirmação do seu valor”.
A este propósito, lembra o escritor David Hopffer Almada que, mesmo quando não havia regras escritas, nem gramática, isso nunca impediu que os nossos trovadores, compositores, poetas e escritores sempre se tivessem feito compreender, oralmente e por escrito, em crioulo.
Assim como se preocupa em dominar pelo menos uma língua estrangeira – o inglês ou o francês – o jornalista deveria também investir na aquisição de conhecimentos da língua cabo-verdiana de molde a poder usá-la como ferramenta, a par do português, no desempenho da sua actividade profissional. Aliás, já no Colóquio Linguístico realizado no Mindelo, destacava-se o papel do escritor e do jornalista na afirmação e no desenvolvimento da língua escrita. Mas para isso, torna-se importante haver uma política de incentivos à criatividade literária e à utilização do ALUPEC – alfabeto unificado para a escrita do crioulo - na comunicação social, como forma de contribuir para a afirmação da língua, enquanto código de comunicação escrita.
É que não basta adoptar as bases e padronizar alguns aspectos que ultrapassam a fronteira do alfabeto como forma de disciplinar minimamente a escrita da língua. Torna-se imprescindível que haja uma politica linguística clara e com reflexos na política do ensino. Que se incentive a escrita e se instituam os mecanismos de divulgação da nossa língua e da nossa cultura. É imprescindível que se conceba uma politica linguística que permita ao Crioulo partilhar com o português o estatuto de língua oficial.
Infelizmente o sonho de ver o Crioulo tornar-se língua oficial terá que aguardar mais alguns anos, uma vez que os actores políticos não se puseram de acordo em relação a um elemento crucial para a dignidade de qualquer povo, que é, justamente, a liberdade de puder utilizar a sua língua de berço em qualquer contexto ou circunstância, sem ser submetido a “tortura” de se exprimir (oral e escrito) numa língua que não domina.
As dúvidas, a desinformação, as contradições que enformaram o debate dessa questão na sociedade civil tiveram impactos na Casa da Democracia, deitando assim por terra a proposta de oficialização do crioulo cabo-verdiano.
É caso para dizer: perdeu-se uma batalha, mas não a guerra. O crioulo está de tal forma entranhado na identidade cabo-verdiana, que não é possível pensar o cabo-verdiano sem a sua língua materna, como ele próprio não se pensa e não existe sem a sua língua. Prova disso foi a constatação do renomado e saudoso escritor brasileiro, Jorge Amado, que, depois de alguns dias em Cabo Verde, concluiu que “a vida em Cabo Verde decorre em crioulo”!
Apesar do pouco à-vontade dos jornalistas no uso, em antena, da língua cabo-verdiana, pode-se, ainda assim, garantir que a Rádio Nacional de Cabo Verde é o meio de comunicação social onde mais se usa o Kabuverdianu. Na imprensa escrita e nas televisões domina, por e simplesmente, o português.
Cientes das responsabilidades do operador público na divulgação e na promoção da língua materna, a direcção da RCV criou, em finais de 2007, um novo canal temático direccionado ao segmento jovem do público que tem exclusivamente o crioulo como língua de trabalho. A adesão dos jovens à RCV+ é prova de que o uso da língua cabo-verdiana é o caminho a seguir na animação e informação radiofónicas.
Um outro dado igualmente relevante, indício, de que o cenário da utilização do crioulo nos meios de comunicação social conhecerá dias melhores, é o facto de a Universidade de Cabo Verde ter criado no ano passado um mestrado em Crioulística e introduzido nos curricula do curso de comunicação social, que arranca ainda este ano, uma cadeira para o ensino da língua cabo-verdiana a candidatos a jornalistas. As TIC têm vindo a constituir-se numa potente ferramenta para a disseminação da grafia do crioulo. Basta ver que a comunicação online no Twiter, no Facebook, assim como os SMS e os chats na internet faz-se em crioulo.
Carlos Santos
O problema não está em falar crioulo na Rádio e na televisão. O problema está nos Jornalistas ( e licenciados caboverdianos em geral) que poucos esforços fazem para falar o seu Crioulo-materno, genuíno da sua comunidade de fala. Por exemplo, o que se ouve muitas vezes nos noticiários na “língua de terra” é a Língua portuguesa com sotaques badio/sampadjudo. Isto, se suprimirmos o “ta” o “pa”, mi, bo e restantes pronomes obrigatórios nos falares crioulos, a ausência de alguma flexão verbal nos discursos, etc., característicos dos Crioulos, estaremos perante um dialeto Crioulo do Português. Não me parece que os Jornalistas escrevam pensando as suas peças noticiosas à partida num crioulo Caboverdiano – as peças deixam resquícios de que fazem a transcrição de uma outra Língua de partida. Os jornalistas, por exemplo, deviam dar-se ao trabalho de substituir o “basta ver” para “ basta bu(nho) odja/ basta bo(bosê/buzot) oiá… Em vez desta tradução escrevem e lêem: … X disse ki “basta ver es barraji di Poilão pa konstata ma vale pena invisti na konstrusão di barragens na kabu Verdi…” Repare que esta frase viola algumas regras gramaticais implícitas de qualquer variante do Crioulo. O Jornalista deverá saber corrigir essas descrioulizações. Logo, defendo que, mesmo que a personalidade “X” tenha dito esta frase citada, não sendo colocada entre aspas, na escrita, ou no DD na fala/leitura, o Jornalista deve transcrever a ideia e lê-la na sua variante materna do Crioulo para a audiência.
ResponderEliminarO Programa Matinal da TCV, show da manhã, mostra tudo aquilo que o caboverdiano não diz em Crioulo espontâneo … Pode-se afirmar que esses jornalistas não se preparam para “animar” esse “SHOW” em nenhuma variante do Crioulo?
Os Jornalistas têm na sua formação disciplinas da ária de Linguística… e de Tradução. Agora, precisam é de saber traduzir um discurso falado/escrito para o Crioulo que fala… Veja que não falo de tradução para a Língua Caboverdiana, porque não existe a Língua Caboverdiana… Em Cabo Verde falamos Crioulo(s) de Cabo Verde, cada caboverdiano à sua maneira, espontaneamente.
Quanto à escrita, se de uma Língua Nacional tem de ser prescritiva. O AK instituído por decreto-lei que regula a escrita do Crioulo segundo um princípio: “um som uma letra”. Cada falante caboverdiano tem o seu sotaque/produção sonora… este princípio fundamental decretado para a escrita da Língua Caboverdiana deixa portas abertas para o caboverdiano pronunciar “pOrtuges” , “pUrtugex”, pArtuges, e assim escrever…
O Locutor de RTC deve saber escolher as palavras de uso na Língua Nacional, e ainda, saber como pronunciá-las e escrevê-las “normativamente” numa frase/discurso… em Língua Caboverdiana. Esta será, seguramente, uma “segunda Língua” de todos os caboverdianos cujo ensino-aprendizagem deve ser atribuída às escolas públicas. Exigir, ainda que tacitamente, a um analfabeto em LCV que escreva, fale e leia correctamente na Língua caboverdiana não faz sentido…
Não me parece má ideia que o telejornal em reposição seja legendado em Língua Caboverdiana… uma forma de divulgar a Escrita do Crioulo. E que, igualmente, os falares Crioulos sejam legendados em português. Não falo de dobragem que é de facto “aberrante”- o país que nos vê e nos ouve é, de certa forma, Bilingue.
Por 20 mil escudos por cada edição, ofereço-me para programar (escrever - traduzir e providenciar locutores para ler…) essa Informação em “Língua de Terra” em todas as variantes/variedades do Crioulo.
PS: O ALUPEC foi convertido em AK por Decreto-Lei. A fase experimental expirou em 2005.
Obrigado pela opinião.
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