quinta-feira, junho 09, 2011

Não, obrigado

Antes que me venhas com mais disquisições sobre a comunicação social cabo-verdiana, um tema inesgotável, aproveito para te dizer que esta é a minha última carta sobre os motivos que concorreram para a minha desmotivação, e ditaram a minha decisão, não intempestiva, como parece, de fechar o ciclo como gestor de conteúdos da rádio público.

Não, não há lapso nenhum, leste bem, “gestor de conteúdos”, é o que os directores da RCV e da TCV são no actual contexto. Uma espécie de super-chefes de programas e, no limite, de informação, mas aqui claramente confinados à redacção central. Como deves recordar, o que tínhamos acordado era estabelecer um diálogo de um nível muitíssimo mais elevado sobre as politicas públicas para a comunicação social cabo-verdiana. É verdade que ainda não me debrucei sobre as questões com que me bombardeias logo no teu primeiro e-mail e que se prendem com a filosofia, os modelos de financiamento e de governação do serviço público.


Achei piada teres-me ligado ontem a queixar-te de fala de energia eléctrica, o que te privou de escutar o BOM DIA CABO VERDE. Sim porque, não sei se sabes, não trabalho na ELECTRA e acabo de cessar funções de chefia na RTC. Se te serve de consolo, acho que estás coberta de razão. Se pagas religiosamente a tua taxa de rádio e televisão todos os meses, tens o direito de ouvir as emissões da rádio pública onde quer que te encontres, ainda que seja através do velhinho rádio de pilhas.


De facto é de todo incompreensível que nenhuma das quatro delegações da rádio e televisão públicas possua um simples gerador de electricidade para responder aos constantes cortes de energia por parte da Electra. A radiodifusão em Cabo Verde é bastante antiga, remonta a 1945, e a RCV é herdeira principal desse legado histórico. É verdade que parece mentira, mas não é. A Rádio Nacional, formalmente criada em 1985, e a TEVEC (hoje TCV), cujos 27 anos de existência foram efusivamente comemorados em Março último, com o alargamento da emissão para 18 horas, até hoje não dispõem de geradores nos seus centros produção.


O facto de não teres podido ouvir o BOM DIA deve-se exactamente à inexistência de energia alternativa nessas delegações. Explico-me: quando se regista um corte de energia em S. Vicente, por exemplo, é toda a região norte que fica privada de escutar as emissões do operador público. Igualmente, e porque o sinal áudio enviado da Praia passa primeiro pelo Sal antes de chegar a Mindelo, se houver um corte de energia na ilha do aeroporto, toda a região de Barlavento fica impedida de acompanhar as emissões da rádio pública. Caricato não é?

Por causa desta situação, há dois princípios basilares do serviço público que são desrespeitados. A universalidade, isto é, a obrigatoriedade de o operador, no caso a RTC, fazer chegar a emissão onde haja um cabo-verdiano e, de preferência, em óptimas condições de audibilidade.


O segundo princípio é a continuidade. O serviço público não pode, em caso algum, ser descontinuado. Tomemos como exemplo, o serviço nacional de saúde. Imagina o que não aconteceria se os nossos hospitais não fossem contemplados com fontes alternativas de energia eléctrica. Houvesse um corte de electricidade, e isto já se tornou o “pão-nosso de cada dia”, todos os doentes ligados à máquina morreriam.


Estamos pois perante um problema de definição de prioridades. Hoje qualquer estação de rádio a emitir no país, por mais pequena que seja, como são os casos das rádios comunitárias, dispõe de um pequeno gerador (motor eléctrico) para no caso de…


Como deves calcular, para um programador, um gestor de conteúdos, é frustrante ver uma boa parte da sua programação cair por terra, ou ter que ser preenchida por música só porque, azaradamente, há um corte de energia na delegação onde ela estaria a ser produzida.


Peço desculpas por estar a maçar-te com os pormenores técnicos, mas não faz sentido falar da rádio, sem os nomear. Suponho que deves estar a par da intenção do governo em introduzir em Cabo Verde, em Junho de 2015, a televisão digital terrestre. E a rádio, será que também não têm direito a um up grade em termos da qualidade sonora? Não gostaria de esgotar a tua paciência descrevendo as virtualidades que a rádio digital traria para um país arquipelágico como o nosso. Se estiveres interessada aconselho-te a espreitares o meu blogue, onde coloquei uma série de artigos sobre esta matéria, com destaque para o DAB.

Perguntas-me sobre a digitalização da rádio e dos arquivos. E eu a pensar que estes assuntos não te interessavam! O projecto de digitalização da rádio vem atrasado há pelo menos uns 15 anos. Com base na carolice de alguns jornalistas e técnicos, a RCV adoptou, nos inícios do ano 2000, ferramentas de edição e gestão de conteúdos. Desde essa altura até hoje vem trabalhando nesse ambiente digital, apesar de boa parte desses softwares não ser profissional. Ainda assim, pode dizer-se que a Rádio Nacional fez há muito tempo a transição do analógico para o digital, ao contrário da televisão que só agora enceta esse passo de gigante. Estamos actualmente na fase de instalação de um sistema integrado e profissional, que vai interligar as várias fazes de produção e de gestão de conteúdos.


Termino esta carta que já vai longa com uma menção à RCV+. Desde que iniciei o segundo mandato, constatei que o projecto do segundo canal não era do agrado do actual conselho. Aliás, só assim se explica que se me tenha sugerido transformar o canal jovem num canal para as comunidades emigradas.

Os obstáculos e o desinteresse em investir na RCV+ saltam à vista dos menos visados. Em Dezembro último, o canal comemorou 3 anos de existência. Pelas nossas previsões, o canal já deveria estar a ser ouvido numa boa parte do território nacional. Infelizmente depois de ter sido inaugurado com pompa e circunstância, a RCV+ apenas tem emissores na Praia e no Mindelo.

É verdade que mesmo dentro da própria rádio nacional há gente que nunca entendeu filosofia que norteou a criação da RCV+. Há também quem considere que se deveria ter optado por um outro modelo de rádio menos temático. Por exemplo, há quem defenda que a RCV+ deveria receber uma parte considerável da programação da RCV, numa espécie de distribuir o mal pelas aldeias.


A criação do segundo canal é um sonho que os profissionais da rádio pública acalentam há mais de 20 anos. Apesar de alguma insistência, nunca houve vontade “política” dos conselhos em avançar com o projecto. Justiça seja feita ao Dr. Marcos Oliveira. No estudo de consultoria mandado realizar recomenda-se claramente a abertura ao segmento jovem. Os inquéritos realizados pela DGCS demonstram à saciedade que os ouvintes que preferem a RCV situam-se numa faixa etária que não é propriamente a juventude. E isso explica-se com a segmentação do mercado que advém do aparecimento das rádios, acentuando-se cada vez mais com as televisões. O modelo de programação que antes consagrava uma hora de conteúdos para os mais jovens na grelha generalista esgotou-se e era preciso ir ao encontro das expectativas dos mais novos. Não se inventou nada. É esse o destino das rádios públicas em todo o mundo.


Infelizmente quer aqui, quer em Portugal, o operador público apercebeu-se dessa realidade quando os privados já estavam devidamente implantados no mercado. Quem se der ao trabalho de ler o projecto de criação da RCV+, há-de constatar que outra coisa não se pretendeu que não fosse ter um canal que cumprisse as obrigações em matéria de programação para os adolescentes e os jovens, um segmento que paulatinamente se foi distanciando da programação institucional da RCV. Não foi à toa, aliás, que a inauguração foi feita pelo Presidente da Republica.


Ora, como se explica esse desinteresse a que se votou a RCV+, indo ao ponto de condicionar futuros investimentos em recursos humanos e equipamentos a níveis de audiência.


Noutro dia estava eu a falar com o gestor de uma dessas rádios temáticas que se mostrava muito cáustico em relação à RCV+, um canal comercial, dizia, e que não tem qualquer razão de ser. Que ignorância! Ou será esperteza saloia? Dizia-me esse especialista que a criação da RCV+ foi um tiro no pé, pois corre-se o risco de ter mais audiência que a própria RCV. Se fosse em S. Vicente dir-se-ia “grande escabês”.

Mesmo que algum dia a RCV+ venha a ultrapassar a RCV no nível de audiência, não será nenhuma desgraça porque ela representa a RCV. Isso quererá dizer que pelo menos estamos a satisfazer as expectativas dos jovens cabo-verdianos. Veja-se o caso da RFM em Portugal que bate de longe a Rádio Renascença. Quem sabe se num futuro próximo a RCV+ não irá contribuir para o rejuvenescimento da rádio pública.


O que a concorrência quer é que se acabe com tudo o que lhes emagreça o bolo publicitário. Que se feche a RCV+, ou que seja travestida um canal para a diáspora, que se acabe com o portal da RTC e que se elimine a publicidade da TCV e da RCV. Se a solução for mais radical, como por exemplo, privatizar a rádio e a televisão públicas, tanto melhor. Viva o mercado!


Tenho que te pedir desculpas por me ter alongado demasiado nesses desabafos de consciência. Se pela leitura dessas cartas terás pelo menos entendido os motivos que me levaram a “bater com a porta”, sentir-me-ei recompensado pelas horas subtraídas às minhas férias. Concordo que as “razões pessoais” não se discutem, mas quando se alega desmotivação para não se continuar à frente de determinado cargo é porque há elementos, há razões, há factores, que determinaram esse estado de espírito, impelindo a decisão de saída. Foram, no fundo, esses os motivos, as frustrações (muito mais haveria a dizer, mas julgo que apenas teriam a virtude de reforçar o que acabo de te contar), uma boa parte do conhecimento dos meus colegas de equipa e da própria administração, que tentei expor nesta correspondência que já vai longa. Como te disse no início, acredito num serviço público de qualidade e por ela comprarei as guerras que forem necessárias.


Uma coisa é certa: Quando um director de uma Rádio Nacional de um país já não tem competências para autorizar o estágio de um aluno dentro da redacção de ele é o responsável máximo e objectivo; quando o director de uma rádio de serviço público não tem poderes para conceder um pequeno patrocínio, em jeito de apoio cultural, a um grupo musical ou de teatro, porque quer num caso, quer noutro, são competências exclusivas do presidente do conselho de administração, alguém já está a mais…

Por isso, a afirmação de que “para esta administração Carlos Santos permaneceria Director para sempre”, só pode ser entendida com uns óculos de ironia.

Depois do festival da Gamboa, também como um cabo-verdiano de gema adoro festas, sobretudo onde há muito povo, vamos reflectir sobre a natureza do serviço público de rádio e televisão que temos em Cabo Verde, os modelos de financiamento e de governação. Pelo caminho iremos comentando o que de mais importante for acontecendo na paisagem mediática cabo-verdiana.

Teu amigo
Carlos Santos


Achadinha, 20 de Maio de 2011

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