quarta-feira, junho 01, 2011

Director, uma espécie em extinção

Na minha última mensagem desatei a falar de muita coisa e acabei por não responder às tuas inquietações. Vejo que não perdes tempo. Pois é, já queres conhecer a minha opinião sobre as declarações do Primeiro-ministro que ontem foi visitar a rádio e a televisão públicas. Como as notícias correm depressa!


Acho imprescindível que os responsáveis pela governação do país conheçam no terreno as condições materiais de funcionamento da comunicação social. Ficou mais claro para mim que o Dr. José Maria Neves tem um grande apreço em relação ao serviço público de rádio e televisão. Já quanto à afirmação de que hoje já não se põe o problema da autonomia dos órgãos públicos em relação ao Estado, sou de opinião que ainda não chegamos a um nível satisfatório. A questão é complexa, pelo que não gostaria de me alongar em considerandos, desviando-me do assunto que comecei a abordar na minha última carta.


De todo o modo, penso que há questões que urge resolver antes de se ser tão peremptório. Olha, por exemplo, o modelo de financiamento do serviço público; a forma de nomeação dos conselhos de administração; os investimentos que necessariamente o Estado terá que fazer, nomeadamente, nas infra-estruturas tecnológicas da RTC; a aposta massiva na qualificação dos jornalistas e dos demais profissionais do SPRT; a clarificação do serviço público e a consequente assinatura do contrato de concessão. Aliás, apraz-me perguntar: onde pára a tal reestruturação da RTC, que há aqui uns anos tanto deu que falar, mas que milagrosamente foi relegada para as calendas gregas.


Mas, como se costuma dizer, estas são contas para outro rosário. Se me permites gostaria de continuar a nossa conversa sobre a figura do director das estações, a quem incumbe a responsabilidade de conceber, produzir uma programação de qualidade e de a colocar no ar. Tanta responsabilidade para poderes e competências tão minguados.


Desde que iniciei funções de chefia na Rádio de Cabo Verde tenho-me batido para uma certa autonomia administrativa e financeira dos órgãos em relação ao conselho de administração. Foi preciso consultores estrangeiros virem dizer o mesmo para se consciencializar dessa necessidade.


A concentração de poderes nas mãos dos administradores começa pelo mecanismo de financiamento das grelhas e do próprio funcionamento das estações. Não faz sentido que as direcções sejam obrigadas a elaborar a grelha, o plano de actividades e o respectivo orçamento e depois, para cada actividade que queiram realizar (cobertura de um festival, feitura de uma emissão especial num dos nossos municípios), terem que fazer nova proposta para a competente autorização do conselho de administração.


Para além do stress desnecessário a que submete os directores dos órgãos, há todo um circuito burocrático exasperante, que não se compadece com o ritmo e a dinâmica de funcionamento dos órgãos de comunicação social. Talvez essa gente não saiba, mas para o jornalista o tempo é uma variável determinante no processo de produção… é que a notícia não espera.


Salvo erro em 2007, a RTC realizou uma formação ministrada por técnicos da RTP sobre a orçamentação e gestão das grelhas de programas. O modelo é simples e assenta na “gestão por centros de custo”. O que é isso: Uma vez analisados e aprovados pelo conselho de administração os orçamentos das grelhas da RCV e TCV, a sua execução corrente passa a ser uma responsabilidade dos directores, mediante um controlo de gestão feito por um técnico administrativo e financeiro.
Basicamente o que o controller faz é ir auxiliando o director na gestão do seu budget para os conteúdos, afectando as verbas necessárias para as rubricas inscritas no plano de actividades e na grelha.


Este modelo liberta o Director de estar por vezes na situação humilhante de pedinchar o desbloqueamento de verbas para realizar as actividades previstas e orçamentadas. É evidente que quem conhece este “negócio” sabe que o grau de imprevisibilidade é muito grande. Estamos a falar de “conteúdos”, de produtos imateriais, mas de grande valor simbólico… um substrato essencial para qualquer democracia que se preze.


Ainda que não se possa falar de censura, estaria a ser injusto se afirmasse o contrário, pelo menos durante os meus consulados em que tudo fiz no sentido de garantir aos jornalistas a máxima liberdade possível para a realização da sua missão de informar, é verdade que o modelo de financiamento dos conteúdos, quer na rádio quer na televisão, condiciona a lógica e a estratégia de programação.


Acho que já deves ter tido a curiosidade de consultar o organigrama da RTC. Ou seja, a forma como a RTC internamente se encontra organizada. Terás reparado que a RCV e a TCV, os pulmões da RTC (empresa gestora dos dois canais), as casas de máquina da empresa, as fábricas onde nasce o “produto”, o serviço, enfim, os conteúdos (informação, programas), a essência da RTC, as suas direcções encontram-se em linha recta com as demais direcções.

Esta forma de organização leva à inércia, pois cria capelinhas, guetos, e o mais perigoso é que toda a gente quer mostrar serviço junto do conselho de administração, mas ninguém se preocupa em suportar em termos logísticos e administrativos os dois órgãos.


Como já te disse é o director da estação o responsável pela determinação e supervisão de todo o conteúdo que sai na antena. Era preciso que perante tamanhas responsabilidades correspondessem idênticos poderes. Mas na prática não é o que acontece. Nas actuais circunstâncias, ele não tem poder para contratar “estrelas” ou dispensar seja quem for. Trata-se de uma prorrogativa do conselho de administração.


É uma espécie de treinador que se vê obrigado a formar e a treinar uma equipa com os jogadores disponíveis no plantel, sem que lhe seja garantida qualquer margem para fazer alterações. Pode até propor ao presidente do clube, digo da empresa, que contrate um ou outro jornalista por forma a cumprir com sucesso a estratégia que gizou para a estação, mas isso depende da disponibilidade financeira e, claro, do capricho do big boss.


Passemos pelas dependências, que é como quem diz, as delegações. Como sabes, a RTC dispõe hoje de 4 delegações, e não digo centros de produção, sob pena de ser interpretado como excesso de linguagem. Mindelo é a maior e a mais importante, Sal, Assomada e Fogo (inaugurada em 2008).

Ora, estamos a falar de estruturas desconcentradas que concorrem para o cumprimento das obrigações que recaem sobre a RTC, enquanto prestadora de um serviço público de rádio e televisão. Portanto, estruturas de produção de conteúdos. Sempre defendi, muito antes dos tais consultores portugueses, aliás, tenho-o escrito em vários relatórios, que o delegado da Rádio e Televisão nessas ilhas devia resultar da escolha conjunta dos directores da RCV e TCV, ficando a nomeação (acto puramente administrativo) na alçada do presidente do conselho de administração. Tens razão, é razoável que assim seja. Pois, na verdade não é isso que acontece. Quem escolhe, convida e nomeia é o presidente da empresa.


A justificação de que há uma componente administrativa e de representação do CA não cola. Tomemos como exemplos as delegações da RTP nas várias capitais do mundo, inclusive, Praia. O jornalista que desempenha estas funções passa por um concurso de entre os jornalistas que reúnam determinados requisitos, propostos pela Direcção de Informação, e o PCA homologa os resultados.


Em S. Vicente, onde existe para além do Delegado, o Chefe de Divisão, uma espécie de chefe de programas e informação, ponte de ligação directa entre a delegação e as direcções no que tange aos conteúdos, os titulares (RCV e TCV) são convidados e nomeados pelo presidente do conselho, sem que os directores tenham sequer sido chamados a pronunciar-se.


Esta prática não tem outro objectivo senão o de dar aos presidentes a certeza de que têm o controlo efectivo sobre toda a empresa. Diz-se que o delegado depende hierarquicamente do PCA e em termos funcionais do director. Ora, balelas! Este modelo de nomeação confere aos delegados a mesma fonte de legitimidade que os directores das estações, que também, como já te demonstrei, são convidados e nomeados pelo presidente. A única diferença é o parecer “não vinculativo” do CCS que a lei exige em relação aos directores dos órgãos. Na história ainda recente da RTC já tivemos delegados que bateram o pé às decisões do director, jogando-lhe à cara, que dependem em primeiro lugar do presidente.


Antes de terminar esta parte que evidencia mais uma fragilidade dos directores dos órgãos, gostaria de te lembrar que sou contra esse modelo de funcionamento da RTC, que não concede às delegações maior nível de autonomia administrativa, financeira e de programação. Descentralização precisa-se. Mas isso implicará uma reforma profunda no modelo que foi desenhado para a RNCV, em 1985. Se quiseres saber mais o que penso sobre este assunto, convido-te a consultares um artigo que escrevi, em 2009, no jornal A NAÇÃO, com o título sugestivo: A Regionalização da Rádio.

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