"O ser que sabe servir-se da pena, que pode publicar o que escreve, e que não diz a seus companheiros o que entende ser a verdade, deixa de cumprir um dever, comete o crime de covardia, é mau cidadão."
Júlio Ribeiro, 1865
Pensei que tivesse sido bastante claro ontem quando te propus para elevarmos o nosso diálogo para o nível macro das políticas públicas e do funcionamento da comunicação social cabo-verdiana. Mas, pelo que vejo, continuas a insistir para que te esclareça sobre o que terá acontecido para que, como disse o jornal A NAÇÃO, uma desmotivação se tivesse apoderado de mim em virtude dos chumbos dos meus projectos pelo conselho de administração.
Ainda bem que tiveste o bom senso de citar o jornal, porque essa parte do ‘chumbo dos projectos’ como ter-te-ás apercebido, não saiu da minha boca. O semanário recorre-se a um tipo de fonte de informação denominada on deep background. Trata-se de uma fonte anónima de atribuição com reserva total. Ou seja, o jornalista não fornece quaisquer elementos que possam levar o leitor a identificar a fonte, antes assume ele próprio a informação.
Mas de certeza que não estarás interessada na revisão da matéria dada. Admito que há muita gente que quando termina o curso atira para um canto esconso da memória ou da gaveta as grandes linhas teóricas que levou anos a aprender nos bancos da universidade. Quase que suspiram de alívio por terem alijado um imenso fardo. Espero que não seja o teu caso.
Perdi ontem algumas horas do meu sono a meditar no conteúdo da tua última missiva. Cheguei a conclusão de que talvez o que me estás a pedir não seja tão despropositado, como à primeira vista parece. Como sabes, tenho procurado ser um indefectível defensor do serviço público de rádio e televisão no nosso país. Missão que só faz sentido se o cidadão for colocado no centro das preocupações dos operadores públicos, quer como parte do processo de criação dos conteúdos, quer como destinatário.
Podem-me acusar de muita coisa, sinto até que fui mal compreendido por muitos daqueles que se diziam meus amigos, mas carregar essa cruz dá-me satisfação e a procissão ainda vai no adro.
Dizia, infelizmente entre nós a lógica predominante do SPRT é a de dar preferência ao Estado, quando não aos governos, aos partidos, enquanto o cidadão, que financia através da taxa e dos impostos indirectos esse serviço, não é nem tido nem achado.
Vistas as coisas por este prisma, sim, talvez tenhas razão, é bom que os cidadãos conheçam as causas da minha profunda desmotivação. Devo aliás confessar-te que não fiquei surpreendido ao saber que um alto responsável da empresa terá confidenciado a um colega meu, que também desempenha cargo de chefia, que eu devia ter explicado ao jornal “quais os projectos que foram chumbados pelo conselho de administração.”
Para início de conversa, que fique claro que reitero tudo o que disse ao jornal Expresso das Ilhas quando bati com a porta pela primeira vez, em 2008. A RTC é uma empresa gorda (talvez até já se tenha evoluído para a obesidade, muito por culpa de excesso de gordura acumulada no sector administrativo), ineficiente e preguiçosa. Infelizmente há uma tendência obtusa de alguns gestores em confundir a quantidade de gente com a qualidade dos recursos humanos.
A definição do perfil profissional dos trabalhadores não foi feita ainda e sequer existe uma preocupação com a qualificação sustentada dos recursos humanos. Não me venham replicar com as reciclagens meteóricas de 4-5 dias. A avaliação de desempenho ainda é uma miragem… e já se fala, imagina, no acordo colectivo de trabalho.
A centralização de poderes nas mãos dos administradores não vem de hoje. Na verdade, a raiz dessa entropia pode ser encontrada no momento do parto sofrível da Rádio Televisão Cabo-Verdiana. Não sei quantos anos terias ao certo em 97, contudo, acho importante que conheças o filme inicial da RTC.
Em 26 de Maio de 1997, o DL nº 31/97, extinguia a Televisão Nacional de Cabo Verde (TNCV), criada pelo DL nº 42/90, de 30 de Junho. Igualmente o DL nº 32/97 extinguia a Rádio Nacional de Cabo Verde – RNCV, criada pelo Decreto nº 44/90, de 30 de Julho. Na mesma dada era criada – DL nº 33/97, de 26 de Maio - uma empresa pública denominada – Radiotelevisão Cabo-Verdiana, EP, abreviadamente RTC.
No entanto, por força da entrada em vigor da nova Lei de Bases das Empresas Públicas (Lei nº 104/V/99), de 12 de Julho, foram adoptados novos estatutos da RTC. Assim, pela via do Decreto Regulamentar nº 3/2000 de 24 Abril, a RTC, EP, assume a forma de sociedade anónima e adopta a denominação Rádio Televisão Cabo-Verdiana, SA (RTC SA).
Com esta breve incursão pela génese da RTC, julgo ter-te dado pistas importantes, caso estejas interessada em conhecer um pouco mais a história da maior empresa de comunicação social do país.
A extinção da RNCV e TNCV baniu com modelos de gestão vigentes na rádio e televisão do Estado, duas empresas até então separadas, que eram dirigidas por directores que detinham, para além das responsabilidades advenientes da gestão dos conteúdos, competências de liderança e demais ferramentas de gestão corrente.
Os primeiros momentos da história da criação da RTC são tudo menos pacíficos. Na verdade tratou-se de uma decisão política gizada nalgum gabinete que não contou com a anuência e a colaboração dos trabalhadores. Ou pelo menos, o projecto não foi devidamente, como se diz hodierno, socializado, discutido, com os principais actores da revolução que se propunha.
A junção da rádio e da televisão sob a chancela da RTC foi uma espécie de casamento encomendado, contra a vontade dos noivos. Apesar dos esforços dos conselhos de administração em gerir uma empresa única, são nítidos os anticorpos de ambos os lados das estações, o que denota uma incipiente cultura organizacional.
As justificações para a criação da novel empresa eram até razoáveis: redimensionamento da empresa (o mesmo é dizer emagrecimento, com base no despedimento), ajustando-a aos seus objectivos e missão; busca de sinergias entre os dois órgãos a RTC-FM e a RTC-TV, apostando na economia de escala; modernização tecnológica; qualificação dos recursos humanos; aposta na qualidade do serviço público, etc.
Os primeiros instantes de laboração do novo operador de serviço público deixam a nu uma contradição entre os discursos e a realidade vivida na empresa. Lutas intestinas nos vários níveis de comando, despedimentos sem fundamentos legais ou de outra natureza laboral, que não fossem os de silenciar os jornalistas mais críticos com o partido do governo; admissões despidas de critérios de mérito e competência; desentendimentos entre a administração e os jornalistas, etc.
Assiste-se também a algumas experiências contranatura em matéria de gestão dos órgãos. Há administradores travestidos de directores de conteúdos, coordenadores “de não se sabe bem o quê”… enfim, uma verdadeira Torre de Babel.
E é neste contexto que surge a nova vestimenta para o director dos órgãos. A lei da comunicação social fixa-lhe as atribuições e as responsabilidades. É ele quem define a sua orientação, determina o seu conteúdo e assegura a representação perante as autoridades… Em termos funcionais, o regulamento orgânico e o próprio Estatuto da RTC traçam as tarefas que incumbem ao titular do cargo.
Pelas funções que lhe são atribuídas, as bases que subjazem à nomeação do director afiguram-se-me frágeis. A lei exige que sobre o “escolhido” recaia um parecer do Conselho da Comunicação Social. Não bastasse o carácter não vinculativo desse parecer, julgo que deves saber que esse órgão de regulação se encontra inoperativo há vários anos.
De todo o modo, creio, que a ideia não é contrariar a escolha do PCA da RTC, mas sim averiguar a ficha do jornalista indigitado, se encontra ou não em situação de (in)compatibilidade com as espinhosas, quão delicadas, funções que lhe serão cometidas.
Ultrapassado esse expediente, fixa-se a nomeação pela via de uma Comissão Ordinária de Serviço. O despacho é inócuo. Não diz qual a duração do mandado, as formas de cessação de funções, a exoneração, o caderno de encargos, e muito menos, os objectivos e as metas a atingir. Trocado por miúdos, a prática da nomeação dos directores dos órgãos RCV e TCV tem sido basicamente a seguinte: o presidente do conselho escolhe um jornalista de entre o colectivo da redacção (que pode vir também de uma delegação), convida-o para o cargo e este, em aceitando…, já temos director.
Convenhamos que em se tratando do garante da linha e do estatuto editorial de um órgão comunicação social responsável pela prestação de um serviço público aos cidadãos – imprescindível ao normal funcionamento da Democracia, por isso, com valência constitucional – as bases para o exercício das funções são de todo frágeis.
Importa acrescentar que ao contrário do que se passa noutras latitudes, no caso de Cabo Verde, não existem instâncias intermédias (algumas inclusive com funções de auto-regulação) que pudessem fazer a ponte entre a redacção e o conselho de administração, ou entre os ouvintes e a direcção… amortecendo também os frequentes choques entre o CA e as direcções dos órgãos.
Estou a falar, por exemplo, do conselho de opinião – órgão responsável pela apreciação das propostas de grelha e do orçamento, que em Portugal emitia, até muito recentemente, um parecer vinculativo sobre a nomeação dos administradores da RTP; do provedor dos ouvintes – recebe as queixas dos ouvintes e procura respostas dos editores, chefes de redacção, jornalistas e direcção… podendo explicar também aos destinatários os mecanismos de produção de conteúdos; o conselho de redacção – a voz do colectivo de jornalistas junto da direcção e do conselho de administração, etc. Isso já para não falar da inexistência de uma comissão de trabalhadores, que forçasse a administração a clarificar as prioridades de gestão e a materializar as missões da empresa, obrigando-a também a prestação de contas aos trabalhadores. Já nem falamos na inexistência da Entidade Administrativa para a regulação da comunicação social.
Mas mais: apesar de a sua responsabilidade primária ser a de determinar e supervisionar os conteúdos, na prática as tarefas desempenhadas pelos directores dos órgãos foram com o tempo alcandoradas às de um director geral, responsabilidades que não vêm, contudo, acompanhadas de competentes poderes e recursos.
Por este arrazoado, julgo que terei demonstrado por que os jornalistas que são chamados para desempenhar as funções de director da RCV e TCV passam pouquíssimo tempo no cargo. O modelo de nomeação induz a constantes instabilidades, colocando o director numa posição de completa fragilidade, podendo ser demitido pelo PCA a qualquer momento, às vezes até sem motivos plausíveis. Isto é grave.
Por exemplo, se se der o caso de o CA não concordar com uma decisão editorial tomada pelo director, dentro da sua esfera de competências, portanto completamente legal e legítima, isso pode ser motivo bastante para se entrar em “rota de colisão”, o que, já se sabe, desemboca sempre na saída do director… É a teoria do elo mais fraco!
Depois dizem que os homens do microfone são desleixados com a escrita! Acabei por divagar e não responder as questões que colocaste, coisa que farei na próxima carta.
Teu amigo
Carlos Santos
Achadinha, 12 de Maio de 11
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