O panorama radiofónico da colónia de Cabo
Verde iria conhecer uma nova dinâmica com a inauguração oficial, pelo
Governador Manuel Abrantes Amaral, da Rádio Barlavento, no dia 30 de Junho de
1955. A emissora, no entanto, já vinha transmitindo em regime experimental,
tendo emitido pela primeira vez o seu sinal no dia 13 de Maio do mesmo ano.
Trata-se da realização de um sonho acalentado pelos sócios do Grémio Recreativo
do Mindelo, cujo desejo principal era o de serem úteis aos seus concidadãos,
colocando para isso o radiodifusor ao serviço de “Portugal de Cabo Verde”.
Os
promotores da iniciativa, liderados por Aníbal Lopes da Silva, acreditavam que
a ilha de S. Vicente, com o seu Porto Grande, escala obrigatória entre a
Europa, América do Sul e África, atravessando uma dinâmica comercial a todos os
títulos invejável, sendo o centro mais importante do Arquipélago, oferecia
todas as condições para uma estação de radiodifusão que tivesse a missão de
fazer a propaganda de Cabo Verde e do seu Porto Grande e, ao mesmo tempo
distrair, instruindo a população das ilhas.
Com
base na promessa feita pelo Governador, Tenente Coronel Alves Roçadas, em
apoiar a iniciativa que representava mais um passo no desenvolvimento de Cabo
Verde, os cento e quarenta sócios do Grémio disponibilizaram 130 contos de uma
subscrição aberta entre eles, e prometeram colaborar gratuitamente na
organização, montagem e funcionamento da emissora. Assim, através de um empréstimo
de 200 contos, valor que seria descontado num subsídio que, por ordem do
Governador, a S.A.G.A concedeu, encomendou-se à PHILIPS portuguesa - que
prometeu facilidades de pagamento – um emissor de 1KW e a aparelhagem
necessária para o funcionamento da estação.
Conforme
escreve o Dr. Aníbal Lopes da Silva, na edição especial dedicada a Cabo Verde
(nº 80) da Revista Portuguesa “ de todas
as ilhas e de indivíduos de todas as categorias sociais, da Guiné, de Dakar, da
Metrópole e do Brasil, vinham palavras de incitamento e de apoio material. As
câmaras municipais atenderam os pedidos que lhes foram dirigidos, inscrevendo
subsídios aos seus orçamentos. A Câmara de S. Vicente, além de um generoso
subsídio anual, forneceu gratuitamente energia eléctrica indispensável, e
assim, embora fosse impossível diminuir excessivamente a dívida, a Rádio
Barlavento conseguiu manter-se à espera de melhores dias que, finalmente,
chegaram com a concessão por parte do Governo de um subsídio anual de 75
contos, que sua Excelência o ministro do Ultramar, Dr. Raul Ventura, por
informação de sua Excelência, o Governador, mandou inscrever no orçamento da
província” (Maio, 1957).
Registada
sob a sigla CF4AC, a estação emitia em ondas curtas, inicialmente na banda dos
50,2, passando depois, para os 75 metros, das 18:30 às 19:30, tendo aumentado
gradualmente o período de emissão até atingir as seis horas diárias.
O Notícias
de Cabo Verde dá conta, na sua edição do dia 21 de Agosto de 1954, que a
direcção do Grémio Recreativo Mindelo, na altura presidida pelo médico José
Duarte Fonseca, reuniu na sua sede várias
personalidades para apresentar a aparelhagem que acabara de receber para os
seus serviços de radiodifusão. De acordo com Rolando Martins (2005), trata-se
do mais potente emissor de Cabo Verde e que, de facto, cobria todo o país. Mais
tarde a Rádio Barlavento passa também a emitir, simultaneamente, em frequência
modulada.
O
jornalista Fonseca Soares (2007) conta que apesar da estrutura amadora, a Rádio
Barlavento era, em 1971, ano em que foi admitido como ajudante de estúdio, bastante
bem organizada a ponto de ter concebido testes específicos para triagem de
candidatos a estágios de radialistas, nomeadamente para discotecário, ajudante
de estúdio (operador de som) e locutor (apresentador).
Para
a escolha de um locutor, “além de
habilitações literárias, era necessário passar por um teste de leitura e
gravação de ‘papéis utilizados’ nos jornais da estação, com um colectivo de
júri (reconhecidos homens da literatura) a aquilatar do mínimo de condições
para se ser aceite em estágio. Notava-se desde logo, que havia um perfil bem
definido para radialista crioulo que começava pelo timbre da voz, acabando na dicção
e um certo nível de cultura geral. Preocupações que, na sua opinião,
atestam o profissionalismo, a organização, a seriedade da estação emissora,
considerada, no entanto, amadora, com gente a trabalhar em regime de ‘part-time’.
Se
na Rádio Clube do Mindelo o aspecto de produção que mais se destacava era a
animação de antena, onde a música se cruzava com a leitura de algumas notícias,
na Rádio Barlavento, cujos responsáveis alimentavam o sonho de a transformar
numa estação emissora de dimensão verdadeiramente nacional, a preocupação com a
informação era visível.
Os
colaboradores da rádio, alguns dos quais estudantes do liceu, que tinham
passado pela RCM, puderam contar com a experiência do professor Rolando Martins
para os orientar no ofício de jornalismo. É o caso de António Pedro Rocha (2009)
que deu na RB os seus primeiros passos como jornalista profissional. “Escutávamos várias estações emissoras
internacionais, porque na altura nem sequer agências internacionais tínhamos em
Cabo Verde, a BBC, a Voz da América, a RFI, em várias línguas e nós, eu o
Neney, mais o velho Chico escuta, gravávamos todas essas emissões, que eram diárias
e íamos fazendo a tradução, muitas vezes num mau português e eu o Rolando
Martins dávamos corpo à notícia e fazíamos o jornal a partir daí…”
Apesar do controlo bastante apertado que o
Estado Novo mantinha sobre as emissoras das províncias ultramarinas, sobretudo
depois da instalação da PIDE-DGS em Cabo Verde, na década de 60, a informação
passou a ser uma componente não desprezível da programação da Rádio Barlavento.
O noticiário, explica Rolando Martins, era constituído por várias secções: o
local, o da província, o da metrópole, o do ultramar e o noticiário do estrangeiro.
“O noticiário da província era enviado
pelo Centro de Informação e Turismo, na Praia, em forma de telegrama. Já vinha
composto. Os outros noticiários eram transmitidos por morse pela Press
Lusitânia, uma agência de notícias ligada ao Governo português, ao Estado Novo,
e as notícias eram transmitidas já feitas. Portanto, não se podia mexer nelas.
Os colaboradores da RB limitavam-se a
transformar a linguagem telegráfica em linguagem corrente, colocando as
pontuações, os quês, os dês, quando havia falha, tentando
descortinar, sempre com imenso cuidado, qual a palavra que faltava, para não
deturpar a mensagem. Ou seja, “as coisas
vinham de tal maneira controladas que não havia meio de se pensar em fazer
qualquer coisa que fosse contra a ordem do Estado Novo” (RM, 2005).
A secção “local” era a que permitia alguma margem
de liberdade aos fazedores de informação, mas, ainda assim, bastante escassa e
sem motivos de interesse, uma vez que as peças recaíam sobre fait divers, nomeadamente as iniciativas
sociais, ou as actividades triviais do Governador e da sua comitiva. Os
acontecimentos eram na maior parte das vezes reportados pelos próprios sócios
do Grémio, sobretudo os mais jovens que, ao terem conhecimento de um evento,
redigiam a notícia e levavam-na para a rádio. Um dos mais assíduos
colaboradores do “noticiário local” era Jorge Pedro Barbosa, filho do poeta
Jorge Barbosa. Quanto aos demais programas, lembra Martins, eram todos enviados
para a censura no dia seguinte.
No primeiro ano de funcionamento, a estação
emissora CF4AC apresentava uma programação assente na variedade dos conteúdos.
Com apenas uma hora e meia de emissão, o alinhamento era o seguinte: abertura
com a Orquestra de Luís Rovira, valsas, noticiário, trechos de óperas, encerramento.
Durante a semana, a estrutura mantinha-se igual, apenas mudando a designação
dos programas.
Como lembra Nogueira (65: 2007), As primeiras
gravações musicais realizadas no arquipélago e que vieram a ser editadas em
disco foram aí realizadas. Mité Costa, a cantar mornas de Jotamonte acompanhada
por um grupo dirigido por ele próprio, foi a primeira da serie de 45 rpm
intitulada “Mornas de Cabo Verde”, editada pela Casa do Leão. Seguiu-se, entre
outros, Amândio Cabral, com o disco em que grava, não em seu nome, a hoje
célebre sodade, cuja autoria veio a
registar anos depois.
Foi também a partir dos estúdios da Rádio
Barlavento que Sergio Frusoni e Nhô Djunga divertiram os mindelenses com o
humor acutilante das suas crónicas que, à hora certa, atraíam muita gente para
ouvi-las pelos altifalantes colocados no exterior do prédio
Foi igualmente na Rádio Barlavento, quando
completava um ano de existência, em Junho de 1956, que Baltazar Lopes da Silva
leu, em duas sessões, a sua palestra indignada sobre o que sociólogo Gilberto
Freire escrevera sobre Cabo Verde. E também um texto emocionado sobre a
importância da obra de B. Leza, no dia da morte deste compositor, em 1958.
A Rádio Barlavento viria a ser tomada, a 9 de
Dezembro de 1974, supostamente pelo “povo” de S. Vicente, instrumentalizado
pelos dirigentes do PAIGC, como parte de uma estratégia de consciencialização
para a causa da independência. Esta iniciativa viria a marcar, para o bem e para
o mal, os caminhos a radiodifusão no país, que acabara de tomar o seu destino
nas suas próprias mãos. A Rádio Nacional de Cabo Verde, que nasce em 1985,
mercê da junção em cadeia da Rádio Clube de Cabo Verde, que passou a deter o
estatuto de emissora oficial; da Rádio Voz de S. Vicente, substituta da Rádio
Barlavento, e da Retransmissora do Sal, representa o corolário de todas as
evoluções históricas que marcaram o panorama radiofónico cabo-verdiano.
Carlos Santos
P.S. Excerto de um artigo científico que
integra o primeiro livro sobre as ciências da Comunicação em Cabo Verde, edição
MEDIACOM, 2013