O Governo parece
determinado em juntar, numa única empresa, os órgãos públicos de comunicação
social. Um primeiro passo para a concretização desse projecto foi dado esta
semana com a nomeação de um gestor único para a Agência Cabo-Verdiana de
Notícias, cuja carta de missão, se existe, não é do domínio público. E isto é o
mínimo que se pode exigir, pois estamos a falar da gestão de um órgão que
presta um serviço público de informação aos cabo-verdianos. De resto, um bem
essencial a qualquer sistema democrático.
O executivo
escora a sua opção pela figura do gestor executivo único na lei nº 47/VII/2009,
de 7 de Dezembro, que estabelece o regime do sector empresarial do Estado, e
nos artigos 15º e 16º da Resolução nº 26/2010, de 31 de Maio, que aprova os
princípios do bom governo das empresas do sector empresarial do Estado.
Entretanto, convém recordar que por Decreto Regulamentar nº 4 de 24 de Abril de
2000, o Governo adaptou os estatutos da Inforpress E.P. às Novas Bases Gerais
das Empresas Públicas. A agência transformou-se em sociedade anónima (de
capitais públicos), passando a gestão a ser exercida por um Conselho de Administração.
Por conseguinte, “a intervenção do
Governo na empresa deixa de se fazer pela via tutelar, passando a sê-lo através de uma Assembleia Geral e de um Conselho Fiscal” (Correia,
2011).
Talvez por ser
leigo – mas não estulto – em matéria jurídica, ainda não consegui perceber como
é que um gestor pode, sozinho, exercer as competências de um conselho de
administração, um órgão colegial, que, no caso da agência, era até aqui
composto por três pessoas. Embora o Governo não o admita, estamos a assistir ao
regresso dos directores gerais nas empresas públicas de comunicação social. Ou
seja, para perpetuar a governamentalização da gestão das empresas públicas de
comunicação social, o executivo é capaz de desencantar leis feitas à medida. Já
agora, se é possível gerir a agência com apenas uma pessoa, o Governo está a
admitir que andou estes anos todos a desbaratar, de forma consciente, o
dinheiro dos contribuintes com pelo menos três administradores. É caso para
perguntar, porque não estender esse modelo de gestão a solo também à RTC?
Sempre se poupavam umas centenas de contos.
Adiante. Ao
contrário do que se possa pensar, a ideia da criação de uma holding não é de hoje. Em entrevista à
TCV, em Maio do ano passado, o ministro da tutela, perguntado se havia algum
projecto para a fusão da RTC e da Inforpress, afirmou que caso os estudos de
que dispunha o governo apontassem nessa direcção, o projecto avançaria, sempre
no intuito de racionalizar os recursos; de fortalecer os órgãos de comunicação
social; de garantir uma maior fluidez de informação e de garantir um maior
acesso dos cidadãos à informação. Portanto, sempre há estudos, só que estão nalgum
sítio esconso do palácio da Várzea.
Tirando as
frases feitas, o que se conclui é que o próprio governo não sabe ao certo quais
vão ser, na prática, os ganhos resultantes dessa fusão. Seria oportuno explicar
aos cabo-verdianos (que são quem no fundo suporta os custos de funcionamento do
serviço público) quais as sinergias que irão resultar desse casamento forçado.
Ouve-se dizer, por exemplo, que assim, pelo menos, quando um jornalista da
agência sai em reportagem pode ir à boleia com os colegas da RTC. Só o
desconhecimento da história, organização e funcionamento de uma agência permite
semelhante disparate.
As
transformações políticas e económicas, aliadas aos avanços tecnológicos, que
marcaram o início do séc. XIX, onde se despontam a revolução industrial; o fim
do absolutismo, e o consequente abrandamento da censura; a invenção e a instalação
de grandes malhas internacionais de telecomunicações e de transporte (telégrafo
e a ferrovia); a procura de informação transcontinental devido a integração das
nações emancipadas das américas na economia mundial, são alguns dos factores
que explicam o surgimento das agências noticiosas.
Elas são
definidas pela UNESCO (1953) como sendo “empresas que têm como objectivo
procurar notícias, de uma forma geral documentos de actualidade, tendo
exclusivamente por motivo a expressão ou a apresentação de factos e a sua
distribuição a um conjunto de empresas de informação, a particulares, com o fim
de, mediante pagamento em prazos fixos e de acordo com as leis e costumes
comerciais, lhes assegurar um serviço de informação completo, imparcial quanto
possível”. E assim tem sido desde que Charles-Louis Havas (1835) teve a
brilhante ideia de transformar o seu escritório de tradução numa agência que passou
a dedicar-se à procura de informações (cotações de mercadorias e
matérias-primas, previsões de colheitas, questões tributárias, questões políticas,
etc.), normalmente na imprensa estrangeira, que eram depois traduzidas e vendidas
aos jornais franceses.
As agências
assentam a sua missão em princípios como a independência, a objectividade, a
actualidade e a credibilidade, só para citar estes, o que pressupõe uma maior esfera
de autonomia. A sua acção é caracterizada pela rapidez na recolha e na
elaboração dos conteúdos. Elas estão onde não estão os outros media, quer por limitações financeiras
(nem todos os órgãos podem dar-se ao luxo de ter correspondentes e enviados
especiais em todos os concelhos, em todas as ilhas do país, e muito menos no
estrangeiro), quer devido a estratégias de cobertura informativa. Portanto, devem
estar sempre um passo à frente na procura da informação em relação aos outros
meios de comunicação social.
Juntar a
Inforpress e a RTC numa única empresa (mesmo que só a nível da gestão) é ignorar
as especificidades desses dois meios, metendo no mesmo saco o fornecedor e o
cliente. Para já, uma das consequências dessa asneira será, a breve trecho, a
diluição da confiança no serviço prestado pela agência, contribuindo para o seu
desaparecimento. Vejamos um caso prático: neste momento colaboram com a RTC,
mediante remuneração, dois jornalistas da Inforpress. Têm por obrigação contratual,
mas também ética, disponibilizar em primeira mão à agência as informações
recolhidas, e só depois enviá-las à RCV. De outro modo, ninguém iria comprar
uma notícia que já passou na Rádio Nacional. Quando as duas empresas forem uma
só, como é que será?
No final do ano
passado, eu e uma colega jornalista da agência fomos a Bruxelas acompanhar a
visita do chefe do Governo. Desdobrei-me no envio de peças para a RCV e para
TCV; ela enviou os seus despachos para a Inforpress, o que permitiu que fossem
retomados por todos os outros meios de comunicação social que, como é evidente,
não puderam deslocar-se à Bélgica. Com a fusão, mantém-se o mesmo esquema de
cobertura internacional ou vai só um jornalista dessa holding? E nesse caso, o repórter fará cobertura para os demais
órgãos, numa espécie de pool
jornalística? São questões práticas que vale a pena equacionar.
Importa lembrar
que os argumentos para a criação da RTC em 1997, processo que resultou da fusão
da RNCV e TNCV, foram praticamente os mesmos que estão agora a ser propalados.
“A empresa foi criada para funcionar como uma estrutura de custo de
funcionamento que lhe permitisse folga para apostar no investimento, designadamente
nas suas infra-estruturas e nos equipamentos. Muitas das promessas no acto da
criação da RTC não foram cumpridas…” (Reis, 2007). O projecto visava,
sobretudo, explorar as complementaridades e sinergias entre a rádio e a
televisão públicas, um objectivo que está muito longe de ser alcançado, pelo
menos em níveis minimamente satisfatórios.
O Governo
socorre-se do plano estratégico da comunicação social para justificar a sua
decisão, pelos vistos irreversível, de juntar a RTC e a Inforpress. Com efeito
a constituição de uma holding é uma
das soluções propostas pelo estudo. O consultor recomenda, no entanto, a realização
de estudos conducentes à criação dessa entidade que englobará todo o sector
empresarial do estado, permitindo a rentabilização dos recursos e as sinergias
necessárias em termos de funcionamento e de gestão. No essencial, o plano de
acção identifica necessidades prementes de investimentos ao nível da
modernização tecnológica e da qualificação dos recursos humanos, para que a
agência possa prestar um serviço público de qualidade aos seus clientes.
Mas mais: pede
que se reavalie o peso do Estado no funcionamento da agência e que se pondere
um modelo de privatização da mesma. Ainda ninguém conhece os estudos que o
governo diz possuir e que, ao que parece, advogam a constituição de uma empresa
única. De todo o modo, o próprio estudo elaborado pelo Dr. Rui Barreiro pede
que se analisem, através do benchmarking,
modelos de funcionamento, de negócio e de governação de agências congéneres de
referência como a Lusa, a AFP, a Reuters e as dos países africanos que possam
servir de exemplo a Cabo Verde. Não acredito que este trabalho tenha já sido feito.
Um outro aspecto
importante que tem sido propositadamente sonegado na discussão (ou melhor na
imposição) desta reestruturação prende-se com o modelo de financiamento da
Agência Cabo-Verdiana de Notícias. O plano estratégico da comunicação social é
taxativo neste particular ao dizer que “é urgente definir um contrato de
objectivo e de meios com o Estado, como é feito noutros países, no sentido de
dotar a Inforpress dos recursos financeiros necessários ao seu desenvolvimento.
Desde que não seja um contrato de concessão como o que foi assinado entre o Governo
e a RTC… uma verdadeira operação de soma nula.
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