Passado o frenesim das eleições autárquicas, retomo as minhas reflexões em torno do relacionamento entre os políticos e os jornalistas em Cabo Verde. Para este exercício crítico tenho-me servido, como pretexto, das afirmações do debutado Abraão Vicente proferidas no jornal Expresso das ilhas nas vésperas do dia mundial da liberdade de imprensa.
Que não se pense que a minha intenção é a de responder ao ilustre representante da Nação. De maneira nenhuma, até porque não vislumbro razões, quer pessoais, quer profissionais, para o fazer. Aliás, as declarações do sociólogo e poeta estão, de algum modo, em sintonia com as posições expendidas pelo próprio Primeiro-Ministro, por ocasião do pequeno-almoço com jornalistas para comemorar a entrada de Cabo Verde para o top ten da liberdade de imprensa, embora não no tom contundente, peculiar do Abraão Vicente.
No texto inaugural desta série (Quem tem medo dos políticos I?) demonstrei, com argumentos científicos, que a crítica que o debutado faz aos jornalistas cabo-verdianos encontra guarida nas teses esposadas pelos defensores do jornalismo cívico e, igualmente, no arsenal teórico que tem sido utilizado para combater o cini-jornalismo, uma corrente que emergiu nos Estados Unidos, mas cujos efeitos se fazem também sentir na Europa.
De seguida empreendi uma viagem no tempo, não tão demorada como gostaria, para tentar perceber o contexto social e político em que se exerceu o jornalismo durante o regime de partido único (Quem tem medo dos políticos II?). A conclusão óbvia é a de que na “democracia revolucionária” havia, como salientou o jornalista David Leite, a “ liberdade de se exprimir desde que não se exprimisse!”
Detenho-me agora na segunda República. Não obstante os princípios ideológicos e as declarações de intenção apregoados, a convivência entre o Movimento Para a Democracia e a comunicação social foi tudo menos pacífica.
Na sua tese de mestrado, publicada depois em livro, com o título “Mal-estar no jornalismo cabo-verdiano”, Isabel Lopes Ferreira demonstra, ao pormenor, a divergência entre os discursos grandiloquentes de pluralismo e liberdade de imprensa e a postura arrogante e autista do governo do MPD, durante as duas legislaturas em relação aos media.
Para já, sublinha a autora, “o dialogo com os jornalistas cessou em 1991, com o corte de relações com a AJOC. O motivo invocado foi a colagem da AJOC à oposição (…) o pretexto para o corte de relações foi o incidente com o jornalista que cobria a mudança de móveis entre casas do Estado atribuídas a governantes, cobertura essa que o jornalista foi impedido de realizar”.
Júlio Vera-Cruz Martins, o jornalista em causa, viria a ser depois, compulsivamente, transferido da Rádio Nacional para a Cabopress, por despacho do Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-ministro, que sustentava a sua decisão na “conveniência de serviço”. Em causa estava a entrevista, no dia 4 de Fevereiro, no espaço informativo 13-14, do conhecido advogado Rui Araújo, uma figura próxima do PAICV, que teceu considerações sobre o perfil dos candidatos presidenciais, tendo questionado “a imagem de competência, de independência e de capacidade decisória” de António Mascarenhas Monteiro, apoiado nesse pleito pelo MPD.
A aplicação da Constituição no que diz respeito às rádios não pôde ser feita até ao período final da primeira legislatura, porque o governo não se esforçou por regulamentar os concursos para a atribuição de frequências, o que só veio acontecer em Fevereiro de 1998. Quanto à televisão, o concurso não foi implementado, o que só veio a acontecer em 2007. Assim, o espaço mediático, em relação ao qual o MPD falava em privatização, continuou ao longo das duas legislaturas como pertença maioritária do Estado e de Estados e instituições da simpatia do Governo, como são os casos da França, Portugal e da igreja católica. Excepção feita à imprensa, cuja liberalização tinha sido já feita durante o regime de democracia revolucionária.
A limitação da responsabilidade do Estado aos serviços públicos de rádio e televisão, ou seja, a desresponsabilização em relação ao jornal e à Agencia Noticiosa, cuja necessidade foi várias vezes afirmada pelo Governo, nunca aconteceu (Ferreira, 1998:335).
As promessas de apoio consistente à imprensa privada, através de mecanismos legais, também só se concretizaram em 1998. A produção de um enquadramento legislativo pormenorizado, relativo aos jornalistas, que incluía desde a revisão do Estatuto do jornalista, até ao plano de Cargos, Carreiras e Salários para os media estatais, passando por diversas outras leis e normas, exigida em ambas as legislaturas pelos jornalistas e gestores dos media públicos, só foi feita em 1998.
A eleição pelos jornalistas, dos seus chefes de redacção e directores, nunca aconteceu, nem foi consagrada legalmente. Solução que, diga-se, ainda hoje não foi implementada. Os responsáveis pela pasta dos media foram frequentemente mudados e raramente cumpriram mandatos que chegassem a um ano e meio.
No prefácio à colectânea “Contexto Jurídico dos media em Cabo Verde”, coordenada por Sofia Centeno, Leão Lopes, que ocupou a pasta da comunicação social durante um hiato de tempo bastante curto, reconhece que as fragilidades e os insucessos das políticas do sector parecem ser mais evidentes que os ganhos e conquistas. “Se fizermos um paralelo entre o legislador e o que decorre no terreno, logo se pode constatar um deficit na concretização de objectivos no plano político e legal, o que parece expressar uma falta de vontade ou uma inércia na capitalização e realização dos ganhos processados de 1991 a esta data” (finais da década de 90).
A imprensa privada ainda é incipiente e a imprensa do estado, paradoxalmente, se reforça. Mais uma vez se pode provar, diz Leão Lopes, que as políticas do sector da comunicação social, pela complexidade e dificuldades na sua implementação no terreno, surgem sempre como um “Calcanhar de Aquiles”dos sistemas políticos em mudança na nossa região e não só.
No sector em questão, acrescenta Lopes, não bastam leis e a modernização dos meios de produção da imprensa oficial. “Há que definir os limites e as políticas do serviço público do sector, de forma clara e refrear o protagonismo do estado na imprensa. Infelizmente, tirando algumas tímidas e avulsas medidas, o Estado (que muitas vezes se confunde com o próprio Governo) continua a ser o principal grupo económico e ideológico na comunicação social em Cabo Verde.
No dizer de Isabel Lopes Ferreira, o único ministro da Comunicação Social que, com lucidez, reafirmou a sua confiança nos jornalistas e transmitiu uma imagem positiva dos mesmos; que tomou a decisão de entregar a gestão da informação na televisão a uma técnica de comunicação social com formação superior, técnica essa que começou por tomar uma posição de força relativamente, por exemplo, à leitura de comunicados do Primeiro-Ministro; e o único ministro que reafirmou o seu desejo de reactivar o Conselho de Comunicação Social, foi Úlpio Fernandes. Mas, sublinha, prontamente viu as suas decisões publicamente contrariadas pelo primeiro-ministro, e a sua autoridade esvaziada.
A escolha de um ministro com ligação à área do jornalismo no seu curriculum, só aconteceu em 1996, com a nomeação de José António dos Reis. As suas decisões apenas vieram a concretizar-se em 1997 e 98. Apesar de tudo, acabou por pedir exoneração por diferendos com o primeiro-ministro.
Uma das marcas de José António dos Reis no panorama mediático cabo-verdiano foi, sem margem para dúvida, a controversa reestruturação da RTC. Numa conferência sobre o “serviço público de rádio e televisão na consolidação da democracia”, realizada pela RTC, em 2007, o ex-ministro reconhecia que a Rádio Televisão Cabo-Verdiana nasceu num quadro de ruptura. “Ruptura quanto à natureza: os órgãos públicos de comunicação social eram então considerados serviços administrativos autónomos do Estado; Ruptura quanto ao figurino organizativo, passando dos serviços administrativos autónomos para uma empresa com a designação da RTC.
Segundo o super-ministro que tutelava, entre outras pastas, a comunicação social, a empresa foi formatada para funcionar com uma estrutura de custo de funcionamento que lhe permitisse folga para apostar no investimento, designadamente nas suas infra-estruturas e equipamentos. Muitas promessas no acto da criação da RTC não foram cumpridas, devendo ser sintetizadas nas seguintes questões:
“Assinatura de um contrato de prestação de serviço público que reflectisse a exigência de uma programação de qualidade a par de uma adequada indemnização compensatória; Um novo edifício (e não enxertos, acrescentamos nós) para a televisão com outras condições de trabalho e mais condizente com a missão que se atribui à RTC; Uma gestão rigorosa baseada em objectivos precisos, quer em termos económico-financeiros, quer em termos da valorização dos recursos humanos; Desenvolvimento de um comportamento empresarial com enfoque para a cultura de resultados, etc.” Portanto, medidas de fundo, ou se quisermos, uma verdadeira transformação que parece ter sido relegada para as calendas gregas.
Na verdade, a génese da RTC é tudo menos pacífica. Tratou-se de uma decisão política gizada nos gabinetes que não contou com a anuência, nem a colaboração dos trabalhadores. Ou pelo menos, o projecto não foi devidamente, como se diz hodierno, socializado, discutido, com os principais actores da revolução que se propunha alcançar.
A junção da rádio e da televisão sob a chancela da RTC foi uma espécie de casamento encomendado, contra a vontade dos noivos. Apesar dos esforços dos conselhos de administração em gerir uma empresa única, são nítidos os anticorpos de ambos os lados das estações, o que denota uma incipiente cultura organizacional.
As justificações para a criação da novel empresa eram até razoáveis: redimensionamento da empresa (o mesmo é dizer emagrecimento, com base no despedimento), ajustando-a aos objectivos e missão; busca de sinergias entre os dois órgãos a RTC-FM e a RTC-TV, apostando na economia de escala; modernização tecnológica; qualificação dos recursos humanos; aposta na qualidade do serviço público, etc.
Os primeiros instantes de laboração do novo operador de serviço público deixam a nu uma contradição entre os discursos e a realidade vivida na empresa. Assiste-se a lutas intestinas nos vários níveis de comando; despedimentos sem fundamentos legais ou de outra natureza laboral, que não fossem os de silenciar os jornalistas mais críticos com o partido do governo; admissões despidas de critérios de mérito e competência; desentendimentos entre a administração e os jornalistas, etc.
Registam-se também algumas experiências contra-natura em matéria de gestão dos órgãos. Há administradores travestidos de directores de conteúdos, coordenadores “de não se sabe bem o quê”… enfim, um ambiente verdadeiramente dantesco.
Quem se der ao trabalho de compulsar os jornais da década de 90, apercebe-se de um clima de tensão entre os actores políticos do arco do governo, os jornalistas e a associação da classe, AJOC. Os processos judiciais contra os jornalistas e os directores da imprensa privada, nomeadamente o jornal A Semana e o Notícias, são o “pai-nosso” de cada dia. A isso se junta a contratação de assessores brasileiros, não para capacitação técnica dos quadros cabo-verdianos, como se chegou a aventar, nem tão-pouco para induzir qualidade ao serviço público de rádio e televisão, mas, quando muito, para reforçar a manipulação, a propaganda e o marketing político à favor do regime.
Em Cabo Verde, escreve o jornalista José Leite na revista Direito e Cidadania (1999:91:94) “o direito à informação que a Constituição consagra como um direito e uma garantia, é uma liberdade fundamental que pressupõe o direito à expressão sem constrangimentos de espécie alguma, a não ser as previstas na lei, mas, amiúde, é posta em causa por comportamentos e decisões que atentam contra esse direito constitucional. Violações essas praticadas conscientemente por actores da cena política, pessoal administrativo e dirigente e profissionais e agentes da comunicação social.
O jornalista, que viu o programa informativo que editava na RCV, “Noite Ilustrada”, ser, abruptamente, suspenso por ordens expressas da então directora da estação, Salomé Monteiro, por ter, alegadamente, insistido no debate da situação anómala criada pela auto-suspensão de Carlos Veiga do cargo de Primeiro-Ministro, reconhece que não houve um corte com o passado. “A democracia pluralista não chegou convenientemente aos órgãos de informação. Os valores democráticos, as leis democráticas, os comportamentos exigidos pelo sistema não chegaram adequadamente ao sector…
Pelo mesmo registo alinha a jornalista Rosana Almeida, para quem “os primeiros passos da comunicação social cabo-verdiana estão a ser marcados, essencialmente por choques de interpretação, onde o político e o legal se confrontam” (1999:117).
Na sua tese de doutoramento “Políticas de comunicação e liberdade de imprensa, análise da situação cabo-verdiana de 1991 a 2009”, o jornalista e docente universitário, Silvino Évora, demonstra a discrepância que existe entre os discursos dos governos do MPD e do PAICV, e a sua actuação prática neste sector. Infelizmente, apesar de ter sido galardoada com um prémio do ministério da Cultura, faz agora dois anos, com a menção expressa da sua publicação, a obra continua ainda remetida a um fundo esconso de uma qualquer gaveta no IBNL, à espera de saltar para os escaparates. É pena porque essa investigação põe a nu, de forma científica e cristalina, as fragilidades da nossa imprensa enquanto pilar da democracia. Não me admira que a sua publicação aconteça só quando formos os campeões mundiais da liberdade de imprensa!
Isabel Lopes Ferreira (1998) conclui, por isso, que as causas do mal-estar no jornalismo cabo-verdiano na década de 90 radicam na política de protelação levada a cabo pelo governo. Com efeito, diz, “o primeiro-ministro tinha realmente intenção de cumprir as promessas formuladas em 1991 e durante os mandatos, e cumpriu-as. Mas apenas quando considerou o momento conveniente para a sua posição. Todos os outros factores, como a desunião dos jornalistas, o culto do medo do desemprego, as acusações de censura e de estímulo da auto-censura, os constrangimentos materiais (…) derivam do primeiro”.
Continua…
Agurado com ansiedade, a continuação para ver o reflexo da situação actual. Em relação à esta parte tudo claro. Fez-me lembrar muitas promessas não cumpridas, sendo o essencial o contrato de serviço público para a radiodifusão sonora e televisiva, com a RTC.
ResponderEliminarFrancisco Monteiro