O deputado Abraão Vicente considera que os jornalistas correm dos
políticos como o diabo da cruz sob pena de serem conotados com os partidos. Um
distanciamento que, diz, não abona ao cultivo de boas fontes de informação. O
seu caso pessoal serve de exemplo. Queixa-se de que desde que está na política
ainda não teve qualquer tipo de “aproximação especial” em relação aos
jornalistas. Talvez não seja despiciendo recordar um princípio caro ao
jornalismo que é o do contacto/distância. Ou seja, o jornalista não deve tecer
relações de cumplicidade ou de amizade estreita com a fonte de tal sorte que a
sua independência, rigor e imparcialidade sejam beliscados. A credibilidade de
um jornalista demora uma vida a construir, mas basta um simples deslize
técnico, ético ou deontológico, para esboroar que nem um castelo de areia. Com
isto não quero dizer que o jornalista não deva ser cordial no trato com o
político.
Não acredito por isso que este relacionamento seco tenha que ver com o
medo ou a competição. Quiçá desconfiança. Um mergulho na história da imprensa
cabo-verdiana ajuda-nos a entender um pouco o comportamento dos jornalistas
cabo-verdianos. Do século XIX ao dealbar da independência, os fazedores de
opinião, proeminentes figuras da ilustração cabo-verdiana, estavam
completamente espartilhados pela censura, um controlo que se acentuou com o
Estado Novo, e os esbirros da PIDE-DGS. Ainda assim, a valentia e o
patriotismo, levam-nos a assestar e a atirar atrevidas pedradas no estado de
indiferença e abandono a que estas ilhas (des)afortundas estavam votadas.
Durante o regime de Oliveira Salazar, o noticiário da província era
enviado pelo Centro de Informação e Turismo em forma de telegrama. Portanto, já
vinha composto. Os outros noticiários eram transmitidos por morse pela Press Lusitânia, uma agência de notícias
ligada ao governo português, e as notícias eram transmitidas já feitas, por
conseguinte, sem qualquer possibilidade de as adulterar.
Rolando Martins, cuja actividade mais se aproximou da profissão de
jornalista, conta que o trabalho dos radialistas consistia em “transformar a linguagem telegráfica em
linguagem corrente colocando as pontuações, os quês, os dês, quando havia
falha, tentando ver, mas com muito cuidado, qual a palavra que faltava, para
não deturpar as coisas. Ou seja, as coisas vinham de tal maneira controladas
que não havia meio de se pensar em fazer qualquer coisa que fosse contra a
ordem do Estado Novo”.
Onde havia uma curta margem de liberdade de expressão era no
noticiário local, mas o bloco era escasso. Na maior parte das vezes as
“notícias” recaíam sobre os “fait divers”
relacionados com as iniciativas sociais, as actividades do Governador,
etc., temas que eram reportados pelos próprios sócios do Grémio (Rádio
Barlavento), sobretudo os mais jovens que recolhiam as informações, elaboravam
as notícias e levavam-nas para a rádio.
A oportunidade para se erigir, durante a fase de transição para a
independência nacional, um ambiente de pluralismo político e de ideias, através
de uma imprensa livre, rapidamente desvaneceu-se. De acordo com o João Nobre de
Oliveira (Oliveira, 1997) “o novo regime
em formação corta pela raiz qualquer hipótese de nascer uma imprensa
independente na terra que se ia tornar independente. Cala mesmo toda a
informação contrária. Só havia rádios para silenciar. Assim, o PAIGC controla a
tipografia e vigia as outras publicações. Consegue a adesão da Rádio Clube do
Mindelo; controla a Rádio Clube da Praia e tomada de assalto a Rádio Barlavento.
No fim, acabou por fechar a Rádio Clube do Mindelo e fundir todas as rádios na
Rádio Nacional de Cabo Verde, pondo fim às rádios privadas, ao mesmo tempo que
acabava com o amadorismo no sector.
O número de jornais
diminuiu. Regista-se um rápido desaparecimento das poucas publicações que ainda
se mantinham no país. O Arquipélago, extinto a 20 de Junho de 1974, cede lugar
ao Alerta, cuja primeira edição acontece uma semana depois. Produto da campanha
contra o Arquipélago, o Alerta, dirigido por David Hopffer Almada, vai procurar
ser diferente do seu antecessor, e nesse sentido “foi um jornal de propaganda política, mas a favor do PAIGC, pelo que
só duraria um mês”.
O jornalismo durante o
regime do partido único está ao serviço da causa da reconstrução nacional.
Segue o modelo autoritário e é colaborante com o esforço do governo no desígnio
reconstrução nacional. A imprensa é, por conseguinte, um parceiro de
desenvolvimento.
Dirigindo-se aos
jornalistas e quadros do partido que participavam num seminário que decorria no
Instituto Amílcar Cabral, de 30 de Novembro a 5 de Dezembro de 1988, o
primeiro-ministro, Pedro Pires, explicitava o seu entendimento sobre a
importância da informação: ““Através de
informação, damos notícias, damos conhecimento dos factos, mas também, através
dela podemos formar. Podemos dar valores e orientações. Mas através da
informação também lutamos. Quero dizer, fazemos com que os nossos dados
prevaleçam sobre os dados dos outros”.
O reforço do papel dirigente do partido na esfera ideológica, em
particular através do fornecimento de orientações e do controlo da acção dos
meios informação, estava acometido ao Conselho Nacional de Informação. Na
opinião do responsável por esse gabinete de propaganda do partido-Estado, José
Araújo, “o profissional da informação que
milite ou não no partido deve ser, pois, antes de mais, um patriota esclarecido
e um combatente decidido da luta pela reconstrução nacional. Todavia, a
eficácia da sua acção está, naturalmente, condicionada por factores que, tendo
a ver a formação político-ideológica, depende igualmente da sua aptidão
profissional.
O controlo sobre os órgãos públicos de informação é total. Em relação
à imprensa a Constituição da Republica é indubitável: O art. 11º, nº 2, define
os meios de comunicação social como propriedade do Estado. No entanto, o art.
41º consagra a liberdade de criação intelectual, artista e científica; o art.
42º, nº 1, garante a todo o cidadão o direito, impondo-lhe também o dever, de
participação na vida política, económica e cultural do seu país; o art. 43º
reconhece a todos a liberdade de expressão do pensamento, nos termos da lei.
A nova lei de imprensa, que substitui o decreto-lei nº 27495 de
Janeiro de 1937, assume, de acordo com artigo 11º, o princípio de que o Estado
reserva para si (nesta fase histórica da consolidação da independência e das
instituições da Republica, da unificação do território insularmente disperso e
do reforço da unidade nacional) o exclusivo de alguns meios de imprensa (rádio,
televisão e agência noticiosa). Com efeito, considera-se de importância
fundamental e do máximo interesse do país reservar a exploração de alguns meios
de imprensa (de maior impacto), ao Estado, tendo em conta o seu papel na
informação e educação das populações e na formação da opinião pública, o seu
poder na transmissão de valores e, enfim, a sua força mobilizadora.
A Rádio Nacional de Cabo Verde (RNCV), as Edições Voz di Povo (E.V.P),
a Televisão Experimental de Cabo Verde (TEVEC) e a Agência Noticiosa
Cabo-Verdiana (Cabopress), funcionam junto da Secretaria de Estado da
Comunicação Social, com natureza de serviços personalizados e sob tutela do
respectivo titular. Os jornalistas são funcionários públicos, situação que não
os ajuda a libertar-se da camisa-de-forças em que se encontravam subjugados.
Segundo o ministro da Informação e Desporto “os órgãos de comunicação social do Estado foram criados como serviços
públicos do Estado e, até há muito bem pouco tempo, tinha aqui convindo que os
componentes de tais organismos eram funcionários do estado. E é nesse quadro
que os jornalistas aparecem”. David Hopffer Almada esclarece que a situação
vem de trás, se calhar mesmo antes da independência: “Agora, depois da experiência adquirida, chegamos à conclusão de que a
situação tinha que se alterar, para se poderem melhorar as condições do pessoal
e atender às exigências que a missão impõe”.
Na mesma entrevista ao Voz di Povo, o ministro confessa nunca ter
cometido um acto de censura: “Tenho a
consciência tranquilíssima – é um princípio que eu tenho – por formação, sou
contra qualquer tipo de censura. Sabe, eu vejo a função do jornalista um bocado
como a função da magistratura (…) é esta mesma satisfação que eu quero ter – e
que vou ter! – no dia em que eu sair daqui: o de nunca ter intervindo no
exercício da função dos jornalistas”.
Opinião diferente tem o jornalista David Leite. Num extenso artigo
publicado no jornal “Opinião”, no início dos anos 90, embora reconheça os
progressos técnicos e de equipamentos, o jornalista, a quem foi retirado o
célebre programa “CARTAS NA MESA”, considera, no entanto, que havia uma
desarmonia entre o crescimento verificado e uma política de pessoal que, ao
invés de acompanhar de perto esse crescimento, pecou pela incoerência, pelo
amadorismo, pela mediocridade, a todos os níveis, e pelo absentismo
intelectual.
Na opinião do jornalista, que se queixa de ter sido perseguido pelo
regime de partido único com processos disciplinares e transferência forçada
para a Praia, negar a existência de censura na informação é o mesmo que negar a
evidência do partido-único. “Embora não
se possa falar de uma censura a Pinochet ou à Salazar (abrenúncio!), fico
perplexo ao ouvir o ministro falar em abertura, transparência, liberdade de
imprensa e quejandos”. Assim, considera David Leite, o jornalista
desfrutava de uma liberdade de expressão silenciosa. “ Liberdade de se exprimir desde que não se exprimisse! Para poder
singrar e não ser marginalizado, era mister que soubesse o que devia dizer e o
que devia calar, fingir que não viu ou não tomou conhecimento. Numa palavra: a
auto-censura, para não pôr em causa a sua carreira. Será isto censura ou será
antes uma das vertentes daquela tal “democracia” à cabo-verdiana que nos foi
imposta?
O jornalista arrola uma série de acontecimentos que ficaram escondidos
na penumbra ou do “não dito” dos média,
sobretudo os estatais. Uma indiferença e um desinteresse que só demonstram
a relativa liberdade de expressão de que desfrutavam os agentes de informação.
“Quem noticiou as prisões arbitrárias e
torturas cometidas aquando da reforma agrária, em 1981? Quem falou das
manifestações em Mindelo, quando a policia arremeteu à bastonada sobre adolescentes
indefesos, arrebatando as câmaras fotográficas para que não houvesse registo
dos factos? E as outras manifestações reprimidas, quem falou delas? Quem
denunciou os desmandos da policia de “Ordem” Pública? Quem falou da
impressionante manifestação da população da Praia, aquando do famigerado
assalto à Sé Catedral? Quem tocou nos escândalos, nos assuntos políticos
considerados delicados, nos casos de corrupção – que não são poucos - que
enfermam a maquina administrativa do Estado?
Denúncias ignoradas pelo ministro da Informação e Desporto, David
Hopffer Almada, cuja cabeça era pedida pelo Movimento para a Democracia, ainda
em fase de constituição como força política, por “não ser a pessoa indicada
para, em circunstância nenhuma, conduzir a conjuntura política”.
O estertor do regime evidencia alguns sinais de afrouxamento do
controlo e da censura aos meios de comunicação social. Embora as opiniões se
dividam quanto ao estado de espírito com que o PAICV encarou o processo de abertura
política, principalmente quanto ao futuro que lhe estava reservado num contexto
multipartidário, o certo é que o partido começa, finalmente, a criar as
condições para que a imprensa largasse as barras da sua saia protectora.
Prova disso é a realização, no dia 17 de Abril de 1990, de uma reunião
alargada do ministro da Informação e Desporto com os jornalistas e os
responsáveis pelos órgãos estatais de Comunicação Social. O encontro contou com
a presença de jornalistas em serviço na Praia, S. Vicente, S. Antão, Sal e
Fogo, e teve como principal objectivo “a
análise e discussão do papel reservado aos órgãos estatais no processo de
mudança que o país vem conhecendo e num futuro regime assente na democracia
pluralista”.
Das conclusões e
recomendações desse conclave, condensadas num documento emitido pelo gabinete
do ministro Hopffer Almada, no dia 19 de Abril do mesmo ano, enaltece-se o
contributo dos meios de comunicação social para desenvolvimento socioeconómico,
político e cultural de Cabo Verde, malgrado as falhas, deficiências e carências
verificadas, tendo-se destacado o papel meritório dos órgãos estatais,
sobretudo, nos últimos anos, na gestação dessa nova fase da vida política
nacional.
Tendo em conta o processo
de mudança com vista a institucionalização de um regime pluripartidário em Cabo
Verde, concluiu-se pela necessidade de adequação dos órgãos de comunicação
social do Estado e do seu suporte legal e institucional ao novo contexto
político emergente, por forma a que possam “continuar
a desempenhar, com dignidade, responsabilidade e utilidade, o seu papel no seio
da sociedade cabo-verdiana”. Mais se constatou ser necessário preparar as
condições com vista a ser garantida, no quadro pluripartidário, a equidistância
dos órgãos de informação em relação a todos os partidos que viessem a existir.
Do encontro saiu ainda
uma recomendação no sentido de se desenvolver acções concretas para uma
formação permanente e multiforme dos jornalistas, visando a sua cada vez maior
capacitação para a análise dos factos e fenómenos sociais e políticos assentes
na objectividade, isenção, imparcialidade, honestidade e seriedade. A propósito
salientou-se a importância da auto-formação no processo de superação
profissional, alargamento de conhecimentos, e melhoria da qualidade do trabalho
dos jornalistas.
Continua…
Caro Amigo e Colega Carlos. Muito bom, pertinente e elucidativo esse teu artigo. Gostei, pois partilhaste connosco informações e reflexões extremamente uteis para todos nós interessados em compreender as contradições e as dubiedades da nossa imprensa - uma imprensa feita por muitos bons e ousados profissionais, mas que exibe também profundas fragilidades. Esta tua reflexão é uma pedra útil na construção de uma imprensa cada vez mais consciente e capaz de apresentar-se como um verdadeiro espaço de uma mediação "despretenciosa" dos inumeros interesses da nossa sociedade.
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