quinta-feira, março 10, 2011

Crónicas que a Vida Conta

O jornalista Daniel Medina apresentou na semana passada na cidade da Praia o seu primeiro livro de crónicas. A obra é fruto de uma profícua colaboração que o autor vem mantendo há vários anos com a Rádio de Cabo Verde, onde apresenta uma rubrica semanal, que antes vestia o género crónica e agora, com a nova programação, assume o formato de “consultório da língua portuguesa”.

Logo a abrir a sua colectânea de crónicas, Daniel Medina sentiu-se na necessidade de explicar àqueles que o vão ler que os textos foram escritos para a rádio, ou seja, para serem ditas e não simplesmente lidas ao microfone.

É que a linguagem radiofónica pode confundir ainda mais os menos avisados. A rádio é, indubitavelmente, o meio de comunicação que mais condiciona a mensagem. Marshall MacLuhan não podia estar mais certo quando declarou que “o meio é a mensagem”.

Partindo do pressuposto de que os meios são “extensões do homem” – como se fossem prolongamentos do corpo, próteses de sentidos que condicionam mudanças no nosso comportamento, o autor canadiano, citado por Daniel Medina, conclui que a era electrónica abalou os fundamentos enraizados na experiência do mundo do homem tipográfico, porque o colocou imerso num mundo visual, áudio-tactil, simultâneo e tribalizado, muito diferente do mundo linear criado pela cultura letrada, pela tipografia.

Essa força arcaica da rádio está na própria natureza tecnológica do meio. Ao produzir imagens auditivas, a rádio cria um ambiente totalmente inclusivo e absorvente que propicia às pessoas um mundo particular em meio às multidões. Alarga o sentido da audição e as faculdades humanas, tornando-se uma extensão do sistema nervoso central. Por essa característica, altera os índices de sensibilidade ou modos de percepção.

Ao reflectir sobre as palavras, o autor considera que elas têm o condão de nos atrapalhar em certas ocasiões. Por vezes são tão escorregadias que desaparecem quando mais precisamos delas. Com efeito, há uma procura incessante da palavra na rádio.

Nenhum jornalista de rádio ou colaborador, por mais experiente que seja, deve esquecer que as condições de escuta condicionam fortemente a mensagem. A rádio tem uma grande vantagem que é a acumulação: ou seja, posso ler, conduzir, cozinhar, realizar mil e uma tarefas e ouvir rádio ao mesmo tempo. Dificilmente se consegue fazer isso em relação à televisão ou ao jornal. São órgãos que monopolizam.

Não é possível escrever uma crónica para a rádio sem pensar que o ouvinte pode começar a ouvir a meio, perdendo, portanto, o início; que facilmente se distrai do que está a ouvir por causa do trânsito; mesmo estando em casa concentrado a ouvir, o telefone pode tocar, alguém bate à porta, etc. Tudo isso para dizer que quando escrevemos e quando falamos na rádio temos que nos rodear de alguns cuidados, por forma a aumentar o nível de descodificação da mensagem e diminuir ao máximo os ruídos. Não nos esqueçamos que a rádio é volúvel, etérea, sensorial e depende apenas de um sentido, a audição.

A escuta da rádio depende destas características. O ouvinte também: quando acorda com o despertador nas notícias do primeiro jornal às sete da manhã, que ouve meio a dormir; quando entra e sai da casa de banho, onde tem um rádio ligado; quando vai procurando no rádio do carro, a estação que mais lhe interessa em cada momento…

O autor de “Crónicas que a Vida Conta” conhece a fragilidade e a instabilidade da escuta da rádio, por isso aposta numa espécie de “diálogo mental” com o ouvinte. Uma estratégia de comunicação que não é fácil: Primeiro há que evitar a todo o custo que o ouvinte desconfie de que estamos a ler e não a falar – no fundo procuramos enganar o ouvinte. O jornalista ou o radialista terá ainda que se esforçar no sentido de levar o ouvinte a descodificar e a entender a nossa mensagem. Na rádio tudo se resume a escrever e a ler. Há uma supremacia do texto face ao som e à voz.

Há que escrever de forma simples e clara para que o ouvinte não fique com dúvidas enquanto ouve. É verdade que no nosso dia-a-dia comunicamos melhor a falar do que a escrever, mas é evidente que do ponto de vista do virtuosismo, quase todos nós escrevemos melhor do que falamos. Acontece que na rádio o virtuosismo não é válido… aqui interessa pouco a erudição, a complexidade, e o virtuosismo que a escrita permite e estimula. Por isso há quem defenda que a rádio é uma forma de literatura oral.

Como conciliar então a simplicidade e clareza da linguagem radiofónica, com as potencialidades estéticas e o apelo à imaginação, características próprias da crónica enquanto género jornalístico que mais se aproxima da literatura?

Das Crónicas que a Vida Conta resulta uma intercepção da subjectividade com a criatividade do cronista. Não há regras para realizar este tipo de crónicas. Estamos perante um estilo comunicante e empático. As crónicas lêem-se com muito prazer. A realidade serve de pretexto à crónica, mas o texto é imaginativo e bastante leve. Há registos poéticos e passagens bastante divertidas. Raramente o autor sugere ou propõe, antes amarra o ouvinte ao prazer da leitura, estimulando o seu intelecto.

Daniel Medina adopta uma escrita criativa que recusa os estereótipos e tenta surpreender, piscando o olho, sempre que possível, ao ouvinte… será quiça uma escrita metafórica, mais arriscada, que surpreenda, uma escrita que dá nova vida às palavras, construindo novas imagens – talvez mesmo alegórica, e sendo por isso mais sugestiva. Mas longe de ser uma escrita tão criativa que seja hermética, incompreensível e de difícil descodificação. Até porque é preciso não perder de vista que a palavra – quando é bem escolhida – tem a capacidade de evocar a imagem visual, de presentificar a realidade ausente.

Ao contrário da televisão em que as imagens são limitadas pelo tamanho do ecrã, as imagens da rádio são do tamanho que agente quiser. Houve alguém que um dia perguntou a Worson Wells se gostava das novelas da televisão, e ele respondeu: “prefiro a rádio, o cenário é bem mais amplo.”

Nos inícios da década de trinta, na altura em que rádio era ainda vista como um mero instrumento técnico de difusão e distribuição de sinais, o dramaturgo alemão Bartol Brecht dizia esta coisa curiosa: “Um homem que tem algo para dizer e não encontra ouvintes, está em má situação: Mas estão em pior situação ainda os ouvintes que não encontram quem tenha algo para lhes dizer. Era preciso que os ouvintes se transformassem também em emissores e que a telefonia tivesse uma função social.

A rádio montou o palco e o Daniel Medina deleitou e fez sonhar os cabo-verdianos que à hora do pequeno-almoço ouviram na telefonia, meio apressados, As crónicas que a Vida Conta. Como as palavras leva-as o vento – a escrita perpetua – agora podemos, sempre que quisermos, entregar-nos às reflexões do Daniel Medina. Pensem Nisso!

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