segunda-feira, janeiro 04, 2010

OS DIAS DA RÁDIO II


Acho oportuno apresentar o meu ponto de vista sobre a interpretação que uma vez ou outra se dá sobre o facto de as estações emissoras dessa época serem privadas, apresentando isso, alguns, até como prova de uma liberdade de expressão no Estado Novo, o que, à primeira vista, parece impensável.

Digo que isso não é prova nenhuma de liberdade de expressão, pois, como asseveram muitos estudiosos da radiodifusão em Portugal, havia um ligeiro abrandamento do controlo e da censura das emissões da rádio em relação à imprensa escrita. Para já, há uma razão clara para isso: a “palavra dita voa, desaparece, enquanto que a palavra escrita fica para sempre”. É natural que quem queira controlar a liberdade de expressão incida mais sobre a imprensa escrita. Também os dirigentes da rádio não seriam pessoas subversivas.

Por outro lado, havia um controlo bastante apertado (…) posso explicar-vos como é que se fazia o noticiário. Eu fui uma das pessoas que mais se aproximou do jornalismo radiofónico. O noticiário era constituído por várias secções. Havia o noticiário local, o da província, o da metrópole, o do ultramar e o noticiário do estrangeiro.

O noticiário da província era enviado pelo Centro de Informação e Turismo na Praia, em forma de telegrama. Portanto, já vinha composto. Os outros noticiários eram transmitidos por morse pela Press Lusitânia, uma agência de notícias ligada ao Governo português, ao Estado Novo, e as notícias eram transmitidas já feitas. Portanto, não se podia mexer nelas.

O nosso trabalho era transformar a linguagem telegráfica em linguagem corrente, colocando as pontuações, os quês, os dês, quando havia falha, tentando ver, mas com muito cuidado, qual a palavra que faltava, para não deturpar as coisas. Ou seja, as coisas vinham de tal maneira controladas que não havia meio de se pensar em fazer qualquer coisa que fosse contra a ordem do Estado Novo.

Onde havia uma certa liberdade era no noticiário local, mas para já era escasso. Normalmente recaía sobre aquilo que se chama em linguagem jornalística fait divers, as iniciativas sociais, digamos, as actividades do Governador e sua comitiva. E nem sequer havia um jornalista para cobrir o noticiário local. Eram os sócios do Grémio, sobretudo os mais jovens, que ao ter conhecimento de um evento, redigiam a notícia e levavam para a rádio. Lembro-me do Jorge Pedro Barbosa, filho do poeta Jorge Barbosa, que era um dos principais fornecedores do noticiário local, mas havia outros. Os outros programas eram todos enviados para a censura no dia seguinte. Era uma censura à posteriori, mas de qualquer forma, ninguém se atrevia…

Ora, numa análise objectiva da estrutura de programação do Rádio Clube de Cabo Verde, em 1951, com apenas uma hora e meia de emissão, constata-se: abertura com a Orquestra de luís Rovira, valsas, noticiário, trechos de óperas, encerramento. Durante a semana, a estrutura mantinha-se igual, apenas mudando a designação dos programas.

Os programas informativos ocupavam 30% de emissão e os musicais 65%, outros programas falados preenchiam a restante programação. A cultura, especialmente a literatura, tinha 2,3%, o humor, 3%, a música, essencialmente internacional, 90%, com predominância da portuguesa, europeia e americana, sendo apenas 8% para a música erudita. A música cabo-verdiana preenchia os restantes 10% da programação musical.

Já em 1960, a programação tinha a seguinte composição: abertura, resumo noticioso, Lembranças pela Rádio 1ª parte, Lembranças pela Rádio 2ª parte, resumo do Boletim Oficial, noticiário, música portuguesa, encerramento. Ao longo da semana introduziam-se outros programas que revelavam já alguma melhoria em termos de conteúdos: Parada Desportiva; Revista de Imprensa; Grandes Figuras da Música; Cancioneiro Panorama Cabo-Verdiano; Teatro Radiofónico, Rádio Jornal.

Uma análise segura e objectiva da grelha de programas da rádio Barlavento torna-se muito difícil, pelo erro grave que se cometeu aquando da passagem da Rádio Voz de S. Vicente do edifício da Praça Nova, para as actuais instalações, nos anos 80, de eliminar quase todos os arquivos, tanto da RB como da RVSV. Esses arquivos que continham toda a história da rádio desapareceram… e eram mantidos rigorosamente ao longo de todo esse tempo.

Creio, no entanto, poder afirmar que durante o seu melhor período, que decorre desde a sua fundação, até meados da década de 60, a Rádio Barlavento conseguiu manter uma programação mais rica, diversificada e interessante do que a sua congénere na Praia. Dando mais atenção à cultura cabo-verdiana e à cultura em geral, à informação, com os constrangimentos já apontados, sem descurar o entretenimento. Difundiram-se programas de bom nível e que atingiram grande popularidade.

Cito de memória alguns: Revista Sonora, Jornal de Actualidade, com grande incidência na cultura e a colaboração de muitos intelectuais, que era feito pelo director, Dr. Aníbal Lopes da Silva; Mosaicos Mindelenses, apresentado por Sérgio Frusoni; Miradouro, crónicas do escritor António Aurélio Gonçalves, o programa desportivo Golo e, especialmente, as célebres, corajosas e saborosas peças de Nho Djunga, de crítica satírica, algumas numa linguagem mais séria, consistindo em crónicas, cartas e diálogos, como a célebre “A Roupa do Pipi” e o “Bom Senso”.

Entretanto, o amadorismo das pessoas que faziam rádio em qualquer das estações emissoras é quase total, recebendo apenas uma gratificação, pois estudavam e exerciam diversas profissões. Não havia jornalistas da rádio, mas sim locutores, que liam as notícias e os textos dos programas, embora alguns realizassem pontualmente reportagens sobre acontecimentos importantes e alguns programas. Diga-se de passagem que a maior parte desses locutores e locutoras era de excelente qualidade e praticavam a rádio com prazer. O mesmo pode dizer-se dos técnicos e do restante pessoal.

Recordemos que após um período de alguma imobilidade, até finais dos anos 50, entra-se num período de largos acontecimentos mundiais, de natureza tecnológica, social, política, e cultural. A corrida ao espaço, a vitória de Castro em Cuba, as independências africanas (já estamos nos anos 60 e 70), os sangrentos conflitos no Congo e no Biafra, a luta contra o Aparteith, a guerra fria e a crise dos mísseis em Cuba, a intensificação da guerra no Vietnam, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos da América, os assassinatos de Kennedy e Martin Luther King, a guerra
Israelo-Arabe , o Maio de 68 em Paris, a revolução na moda (mini-saia) …

Toda a essa efervescência tem enorme repercussão nos meios de comunicação em todo o mundo mas, em Cabo Verde, a sua difusão é estritamente controlada. Ao mesmo tempo, na metrópole e nas colónias aumenta a censura e a vigilância da PIDE que se instalara em Cabo Verde logo nos princípios da década de 60, o que, no meu entender, contribuiu par uma menor qualidade na prestação das emissoras. Parece-me que nem a efémera primavera de Marcelo Caetano se fez sentir nas colónias. No entanto, o número de receptores e de ouvintes cresce muito devido a chegada a Cabo Verde dos aparelhos a transístor a preços baixos nos inícios dos anos 60.

Uma breve referência à Rádio Libertação que iniciou as suas emissões em 1967 em solo guineense, mas era orientada para a Guiné e Cabo Verde como instrumento importante para a luta de libertação. Dizia Amílcar Cabral que a emissora tinha “coragem, a potência e a eficácia de vários corpos do exército”, Isso mostra, mais uma vez, a importância da rádio em conflitos armados.

Vejamos agora os programas de um dia e de uma semana na Rádio Barlavento em 1974. (…) Literatura, Ritmos, Resumo Noticioso, Vozes Femininos e fecho; no segundo período: Disco do Ouvinte, Noticiário, Música Portuguesa, Cartas de Ouvintes, Novo Mundo, Publicidade, Encontro às Dez, Variedades, fecho.

Em termos percentuais: a informação tinha 10% de toda a emissão; programas puramente musicais, 33%, um programa de variedades que era de música e palavras, diariamente transmitido durante duas horas, abrangia 35%, outros programas falados, 12%; o desporto detinha um 1%, a cultura 2%, a religião 1%, a publicidade 6%, um programa militar, 1%, ensino da língua inglesa, 2%. Apenas 22% dos programas musicais era de música cabo-verdiana. Não se transmitia música clássica.

De salientar que ao longo de todo o percurso da radiodifusão no mundo aqui resumido, mantém-se sempre um domínio informativo, cultural e tecnológico dos países mais avançados em relação aos subdesenvolvidos. Este domínio exercido, sobretudo através das grandes agências internacionais, é o corolário e o prolongamento de uma dimensão politica e económica.

Desde os princípios da década de 70, os países em desenvolvimento não-alinhados esforçam-se por criar uma ordem internacional de informação que pusesse termo a esse domínio. Obviamente, só depois da independência, Cabo Verde se junta a esses esforços que hoje estão ultrapassados por novos conceitos e tecnologias de comunicação e informação.

Outro aspecto a referir é a concorrência entre a rádio e a televisão que ganhou maior dimensão no mundo a partir da década de 60, apresentando cada um desses meios os seus trunfos e as suas desvantagens. Em Cabo Verde esse confronto só se inicia em meados dos anos 80. Mas actualmente exige mais atenção e estratégia da rádio, dado o inegável poder sugestivo da imagem televisiva. Quanto à imprensa escrita, creio que não constituiu adversário à altura da rádio, pela irregularidade dos jornais, à excepção do Boletim de Propaganda, à sua fraca tiragem e difusão e à percentagem elevada de analfabetismo.

Termino com a tomada da Rádio Barlavento e a sua transformação na Rádio Voz de S. Vicente, em 9 de Dezembro de 1974, episódio marcante da luta política sujeito a interpretações divergentes, que rompeu com força depois da Revolução de Abril e que mais uma vez evidenciou a importância da rádio, particularmente, na luta politica.

4 comentários:

  1. "Eu fui uma das pessoas que mais se aproximou do jornalismo radiofónico."

    De que tempo fala? E Carrilho? E Carlos Lima? E Fatima Azevedo? E Luis Lobo? Todos mais velhos e com formaçao em jornalismo de Radio, Produçao e Realizaçao de Programas na RDP Internacional em Portugal?!

    E Fonseca Soares? E Carlos Gonçalves? E Antonio Rocha? Todos com formaçao em França também no jornalismo de radio e produçao e realizaçao?

    Esta história está enviesada. Também os noticiários locais e a redacçao dos noticiarios duma maneira geral que nao vinham nada prontos. Eram redigidos, a partir de telex; mas tinham uma redacçao propria. Reveja as suas fontes!

    Lyz Kabêl

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  2. Eu percebo que lhe perturba a ideia de que no tempo colonial das radios comerciais havia uma certa liberdade de expressao. E' um paradoxo, mas olhe que é verdade e você mesmo o diz sem saber.

    Quando diz que Rouba de Pippi de Nhô Junga passava nas radios, o que é isso a nao ser liberdade de expressao. Mas ja imaginou que o que Nho Djunga passava nas radios no tempo colonial, o que nao acontecia durante a nossa independência?

    Ja imaginou que a RAdio com a independência so passava a carilha do PAIGC e nao era admitida nenhuma critica do tipo do que era feito por Nhô Djunga?

    Logo, havia mais liberdade de expressao no tempo das radios comerciais antes da independência. Você tem de ter na mente que estavamos em regime salazarista. Mas Nhô Djunga passava na radio. Sabe porquê? Porque contrariamente ao que você escreve, nao havia censura na Radio Barlavento nem na Radio Clube, comandada a partir de Lisboa. O que havia era gente como Senhor Telmo, de mente rigorosa e autoritaria que tomava a iniciativa de ver os textos antes de irem para a antena. Mas nao havia nenhuma directiva vinda de Lisboa.

    Enfim, ha outro aspecto que lhe confunde. O que as pessoas dizem mais do que liberdade de expressao nesse tempo, é que havia pluralismo de radios, o que morreu com a nacionalizaçao e partidarizaçao da vida publica e politica em CVerde com a suvida ao poder do PAIGC. Trocou-se um regime colonial monolitico, para outro regime comunisto autoritario, mas mais opressivo, porque estava no país, aí ao virar da esquina, e sem um Nhô Junga, enquanto o regime colonial estava longe em Lisboa na Metropole, quer dizer longe....

    Pense antes de escrever, saiba raciocinar, saiba pensar e nao repetir discursos dos outros. Saiba questionar, saiba dizer EU!

    Lyz Kabêl

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  3. Caro Lyz,

    Parece-me que o meu amigo está a dirigir os seus comentários e críticas ao autor deste blogue, no caso vertente, o jornalista Carlos Santos, quando, na verdade, o texto "Os Dias da Rádio II é uma continuação da longa intervenção do Dr. Rolando Martins produzida numa mesa redonda realizada em 2005 em S. Vicente para reflectir sobre a tomada da Rádio Barlavento.

    Profissional com muitos mais anos de experiência do que o Lobo, o Carrilho, a Manuel Azevedo, o Carlos Lima, embora tenha abandonado o ofício há vários anos.

    De todo o modo agradeço a sua contribuição.

    C.S.

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  4. Carlos Santos diz-me que o texto nao lhe pertence mas que é da autoria de Rolando? Bom, as minhas desculpas, mas eu acho entao que devia colocar o nome do autor dos textos, porque ao escrever no fim "publicado por Carlos Santos", pode criar uma certa confusao. Ou entao mete-se o nome do autor logo a abrir o texto qualquer coisa como escrito por.....

    De qualquer maneira, a minha mantem-se na sua totalidade, somente que em vez de ser dirigida a Carlos, a endereçada ao seu proprio autor Rolando. Continuo a achar estranho a frase de Rolando, de que foi das pessoas que mais aproximou o jornalismo radiofonico, apesar dele ser mais velho do que Carrilho, Lima, etc, como Carlos diz.

    Até porque Rolando escreve que na altura x havia locutores e nao jornalistas. Logo como é que ele pode ter-se aproximado de um "jornalismo radiofonico" que no seu entender nao existia? E' um paradoxo, que ainda por cima nao tem razao de ser, pois havia jornalismo radiofonico, so que nao vejo sombra de Rolando nele.

    Rolando era locutor da Radio Barlavento e como era também professor de português ele foi solicitado para corrigir os textos ou para dar-lhe uma redacçao num bom português. Onde é que Rolando aprendeu jornalismo radiofonico? Em que Escola? Se foi como tarimbieiro, com que é que ele aprendeu jornalismo radiofonico, se no seu tempo de locutor ele mesmo dizia que nao havia jornalistas?

    Nao estou de acordo, agora com o Carlos, quando diz Rolando era um "profissional com muitos mais anos de experiência do que o Lobo etc...". Ou entao eu perguntaria profissional de quê? Está subentendido na sua afirmaçao que seria profissional de locuçao e jornalismo.

    Ora bem, locuçao talvez, apesar de nao ter certeza, pois quer o Lima quer o Lobo começaram em 1972/73, altura em que o Rolando teria começado também na Radio Barlavento. Repito so locuçao, porque jornalismo de radio Rolando nunca fez. Que géneros ele praticou? A entrevista, a reportagem? Nao acredito, pois nao me recordo de ter ouvido uma unica entrevista feita por Rolando. Ler uma noticia ou um aviso de achados e perdidos muitas vezes escritos por uma outra pessoa nao dá direito a carteira de jornalista.

    Rolando foi a exemplo de Manel, militante do PAIGC que foi nomeado director da Voz SVicente e depois director geral da Informaçao, o que nao quer dizer necessariamente que a pessoa é jornalista. O actual presidente da RTC por exemplo nao é jornalista. Ou ja foi promovido também a jornalista?

    Enfim é mais grave entao que estas afirmaçoes tenham sido proferidas por Rolando Martins, pois estao pejadas de erros para alguém que viveu essa época que ele descreveu.

    Carlos tem de pedir testemunhos da doutora Fernanda que era também locutora na Radio BARLAVENTO NA ALTURA; Ja agora ela também era jornalista? E a mulher de Dr CHiquinho era também jornalista? Tem de ouvir outras vozes que passaram também pelo Radio Clube como Gaby da Académica; ele era jornalista? A sua companheira Fatima professora primaria. Era também jornalista? Nao, Carlos Jornalistas sao esses nomes que citou na resposta que me deu e foram eles que fizeram o tal jornalismo de radio, tendo Rolando e outros como directores politicos para coordenar e vigiar em nome do PArtido. Fazer radio, é outra coisa, e essa radio foi feita nao por gente do PARTIDO, mas por Carlos LIMA, Carrrilho, Carlos Afonso, John Matos, Fraqueza etc...Enfim, nao me façam rir!...

    Lyz Kabêl

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