
É pelo conteúdo do texto de Corsino Tolentino que propomos perceber os escritos de Manuel Delgado que vão desde da política à cultura, da economia às relações internacionais:
Este encontro com De Rabidantibus (Colectânea 1975-2006) é uma homenagem a Manuel Delgado, 60 anos depois do seu nascimento, a 22 de Dezembro de 1949.
Na verdade, este livro é a realização de um projecto. Mas é o próprio Manuel Delgado que inicia o texto Cretcheu más sabi ê quel quê di meu, sobre o trigésimo aniversário da independência nacional, com este explícito bem à sua maneira: “é bom comemorar sobretudo quando há o que comemorar, porque comemorar é lembrar com júbilo” e no caso concreto, “é festa da memória e da identidade” (p. 426).
Também apetece-me acrescentar a relevância deste livro como fonte de informação sobre a acção política do Autor e como fonte histórica, necessária à compreensão dos processos, personagens e factos que moldaram as três décadas demarcadas pela escrita, entram na definição do presente colectivo e participam no desenho do nosso futuro comum. Por outras palavras, entendo que temos nas mãos uma vida e uma obra com valor jornalístico, político, histórico, literário e filosófico. Se exagerar, farei como o Autor fez várias vezes, darei a mão à palmatória.
De político de circunstância a jornalista de referência
E enquanto esperamos o que virá da Clara e do Neftali, o primogénito, que falarão pela voz da Lia, sirvo-me destes empréstimos familiares do António Pedro e da Glaucia para justificar a minha recomendação de leitura deste calhamaço feito de textos curtos, densos e directos, ocupando cada um, em média, pouco mais de uma página.
Pois bem, afirmei que estamos na Biblioteca Nacional para evidenciar a acção do Manuel Delgado, a qual é, no nosso entender, merecedora de admiração e reconhecimento, pelo efeito que ela tem na conduta pessoal e profissional de um grande número de pessoas e, provavelmente, terá nas gerações futuras.
Porquê uma referência jornalística? Porque entre o analfabetismo de muitos, o conhecimento enciclopédico de alguns e a descontinuidade fragmentada da cultura electrónica, característica do tempo presente, Manuel Delgado ouviu a chamada de atenção de Neil Postman para o facto de no nosso universo existir cada vez mais informação e cada vez menos sentido, prestou atenção a tempo de optar por um caminho próprio entre o real e o virtual, sem perder o pé.
Jornalista firme, de largos horizontes e arriscadas apostas na imprensa cabo-verdiana dos primeiros tempos da República e em Portugal, o fundador do primeiro jornal exclusivamente electrónico de Cabo Verde (Paralelo 14) foi também um homem de rádio, lembrem-se do Debate Africano, da RDP-África.
Tendo aprendido cedo a lição de Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, e de Funes, de Jorge Luís Borges, Manuel Delgado escapou ao deslumbramento provocado pelo excesso de exposição à luz e raramente terá misturado alhos com bugalhos. Como sabem, à semelhança do que tinha acontecido a Prometeu, Victor Frankenstein caiu do paraíso por ter tentado criar a vida a partir da matéria, tendo como castigo um monstro incontrolável e Maurício Funes, apesar de dotado de uma memória prodigiosa, encontra-se perdido no hiper texto dos mass media: fenómeno da época moderna, incapaz de extrair qualquer sentido do caos da informação torrencial (p. 21).
Pelo contrário, os textos de natureza jornalística de Manuel Delgado, a maioria dos 411 que compõem este volume – alguns inéditos incluídos – têm uma estrutura permanente: o título, a introdução e, por vezes, o lead – uma contextualização sumária – informam o leitor do que interessa ao Autor. Em seguida, o corpo de factos, argumentos e, em certos casos, a justificação da falta destes explica a informação e lhe dá sentido. Em geral, uma conclusão em forma de convite à reflexão fecha a escrita.
Esta é a regra e as notáveis entrevistas, entre as quais O Meu Amigo Comandante (p. 352), Navegações (p. 217), Alfinete (253) e um texto romanceado entre os inéditos das últimas páginas são excepções.
Distinguiu-se no cumprimento da tarefa de relacionar, organizar e processar dados de quotidianos complexos, sempre ao serviço do que ele considerava caminho entre caminhos da verdade, da liberdade e da justiça, a qual, em seu entender, nunca existiria bastante sem a coragem de informar, decidir e agir na hora com conhecimento de causa. Por conseguinte, é justo afirmar que Manuel Delgado fez escola e é referência no jornalismo cabo-verdiano e em língua portuguesa.
Mas praticou o jornalismo no contexto da libertação nacional e da construção do Estado e do Poder Democrático. Foi político antes de ser jornalista e nunca mais deixou de o ser. Mas terá conseguido conciliar estes dois campos de acção, a política e a informação, que se excluem, para se complementarem na democratização da sociedade?
Se, simplificando, o objecto da Política for a organização, a administração e a direcção das nações e a Informação significar essencialmente a arte de processar e difundir dados para provocar uma modificação no estado do conhecimento e na atitude colectiva, ambas são necessárias e compatíveis.
Textos como Informação, Ponto & Vírgula, Espaço de Criação, Ilhéu, A outra África e Europa e África no ano 2000 são exemplos dessa compatibilidade necessária. Por outro lado, são numerosas em Manuel Delgado as referências e polémicas relacionadas com a construção do Estado de Direito, a Democracia e a Gestão eficiente das expectativas e dos recursos de Cabo Verde, antes de a boa governação ser moda nos sentados dos workshops de ontem e seminários de socialização de hoje.
Sem dúvida, fonte histórica
Com esperança na concordância dos historiadores, fomos sugerindo que De Rabidantibus tem valor de fonte histórica. Mas, terá mesmo? Se História é, como a entendo, a ciência que estuda o ser humano no tempo, os artigos, as entrevistas, a polémica, a ironia, o sarcasmo e os neologismos do Manuel Delgado serão indispensáveis à explicação de Cabo Verde no período de 1975 – 2006.
A obra também fornecerá pistas interessantes a quem procurar compreender a natureza e a evolução das relações internacionais, em particular entre os Estados resultantes da queda do império português.
Manuel Delgado encarou a explicação da Histórica de Cabo Verde, dos Cinco (Estados Africanos de Língua Portuguesa), da África contemporânea e do Mundo em mudança acelerada a partir dos anos 80 do século XX como uma missão que até hoje ninguém cumpriu com igual garra.
Lição a não perder, fazia como Hannah Arendt e os poetas sugerem: contava a História para envolver as pessoas na construção do próprio destino. Manuel Delgado é fonte histórica, sim.
Valor literário escrito e inscrito para se ver depois …
E agora vem o valor literário do livro. Melhor dizendo, virá. É que prevendo esta situação, tomei a precaução de sugerir aos meus primos que convidassem o meu xará Fortes, para mim, um dos três apresentadores naturais deste livro, pelo talento, o humor, a obra e a admiração que o Manuel inscreveu em vários dos seus textos.
Assim se fez, o Fortes foi convidado mas não pôde comparecer, vos saúda e recomenda que falemos da literatura na obra de Manuel Delgado numa próxima ocasião. Está bem, digo eu, se vamos falar é porque existe e se existe pode esperar. Fica escrito e inscrito para se ver!
A filosofia além do estado oficial dos seres e dos saberes …
E onde está o valor filosófico? Responder a esta pergunta obriga a observar separadamente e em retrospectiva, para os excluir, o argumento que transforma o Autor num jornalista de referência: a capacidade extraordinária de analisar e ordenar factos, personagens e acontecimentos para os apresentar com sentido e coerência; os atributos que conferem à obra o estatuto de fonte histórica: a necessidade objectiva de incluir o livro na lista dos documentos que a sociedade e a academia classificarem como fontes; por fim, o que fez do Manuel Delgado um político jornalista.
Mas o problema não fica resolvido com a simples separação de funções e circunstâncias, porque não basta dizer qualquer coisa como isto: tudo o que não justificar o valor jornalístico, político ou histórico e procurar a verdade, será de interesse filosófico. Não, porque já o vimos, a procura da verdade não é exclusiva do filósofo, o qual tem a missão de explicar teoricamente os acontecimentos e os factos do quotidiano. Ora, em textos sobre a Cultura, a Ética, a Religião, a Política e o Estado, Manuel Delgado revelou talento e coerência além do estado oficial dos seres e saberes.
Com a ajuda de Michel Foucault, o que faz de Manuel Delgado um filósofo é a sua arte de sacudir as familiaridades do nosso pensamento, pensamento que tem a nossa idade, a nossa geografia e o nosso conforto, abalando as superfícies ordenadas e inquietando a nossa prática do tempo que passa. Manuel Delgado é o filósofo do desconcerto criativo.
Mas, o que justificará a leitura?
Adiante, admitindo que os argumentos apresentados são válidos, o que realmente recomenda a leitura de Manuel Delgado?
O universo dos destinatários da minha recomendação inclui os cidadãos nacionais e estrangeiros que queiram saber como se ganhou uma bandeira e como se constrói um Estado de Direito e a Democracia nestas ilhas de parcos recursos naturais.
Em particular, a recomendação é endereçada aos dirigentes e pretendentes, pela simples razão de não ser possível dirigir com eficácia e justiça sem conhecer.
Uma segunda categoria de destinatários é a dos professores e estudantes interessados na compreensão do que aconteceu de fundamental neste país, entre 1975 e 2006.
Outro motivo é o exemplo de verticalidade e coragem que permitem o comprometimento patriótico, a independência intelectual e a eficácia na identificação e defesa da causa pública.
Poder-se-á acusar-me de exagero e não será difícil obter razão neste país onde deixamos as filas dianteiras das salas de conferência vazias, para não sermos suspeitos de arrogância ou de querer dar nas vistas de quem manda. Tenho consciência deste risco, assim como do perigo de eu me enganar, mas sei também que é pelo erro inevitável que avançamos.
Será necessário afirmar que não recomendo o Manuel Delgado como dogma, mas tão-somente como uma referência a comparar com outras, como o próprio fazia, através da análise, comparação e criação de conhecimento? Não.
Teria agora algum valor condenar o Manuel Delgado por não ter cuidado bastante de si e ter-nos privado e ao país do muito mais que teria podido dar? Também não.
Porém, uma coisa é certa: Manuel Delgado fez crescer o património nacional. É o que realmente interessa. Por isso, vamos reter o seu exemplo de verticalidade, comprometimento e independência pessoal e intelectual para que a defesa do bem público e dos interesses privados legítimos seja eficaz.
De Rabidantibus é livro para se ir lendo, página a página, com gozo e proveito. Fazendo-o, alguns leitores descobrirão que a Glaucia e sua equipa fizeram excelente trabalho e que, apesar disso, muitos escritos andam por aí. Que os enviem para a segunda edição!
Terminemos com júbilo, até porque hoje é dia da inauguração do aeroporto internacional de São Pedro, São Vicente, e há festa no Mindelo.
Praia, 22 de Dezembro de 2009
Corsino Tolentino