quarta-feira, junho 03, 2009

CIDADANIA CULTURAL


“Creio que poderemos contribuir para a mitigação desta ideia redutora que temos da Cultura”. São palavras de Elisângelo Ramos. Abandonou o teatro e a produção cultural para se dedicar à Rádio. Jornalista da Rádio de Cabo Verde tem, agora, em elaboração um projecto para a TV. Terra Activa, diz-nos nesta entrevista, quer difundir a cultura que se faz nas principalmente nos bairros “lá onde os média nacionais nem sempre chegam”.


KRIOL RÁDIO: A cultura tem sido para ti uma grande paixão. Na calha tens mais um projecto de produção e difusão de conteúdos culturais. Em que consiste o “Terra Activa”?

ELISÂNGELO RAMOS (E.R.): Apesar de cabo Verde ser um País reconhecido por uma vasta cultura, temos poucos espaços de divulgação cultural nos meios públicos e privados de Comunicação Social.

Não raras vezes, todos os esforços dos produtores de informação cultural, centram-se no relato noticioso das actividades. Seja um filme, uma peça teatral, um espectáculo de dança, um fórum, uma exposição ou um livro; a informação se esgota na notícia em si. Falta a consideração de que a acção cultural só se completa, de facto, quando é compreendida pelo público.

O Fórum sobre a “Economia da Cultura”, em 2008, na Cidade da Praia, compreendeu e recomendou que se criem condições e estímulos à uma maior divulgação cultural nos Média cabo-verdianos.

Partilhando este mesmo sentir das autoridades, criadores e produtores culturais, decidimos pela elaboração, apresentação, produção e realização de um programa televisivo visando mitigar o actual cenário de quase ausência de “produção” cultural no audiovisual nacional.

Mais: este é um projecto que vai ao Cabo Verde real. Nos bairros propomos descobrir um País de braços descruzados a procura de satisfazer necessidades sociais, educativas e culturais; nem sempre relatadas à maioria dos cabo-verdianos.

KRIOL RÁDIO: Sem bem entendi, propões um mergulho cultural no país real. Por que esse interesse pelo pulsar cultural nos bairros periféricos?

E.R.: Desde há 16 anos que venho trabalhando sobretudo na reportagem especificamente de cariz cultural; artes e espectáculos. Num passado recente tive imenso gosto , juntamente com os técnicos Adão Brito, Paulo Mendonça, Carlos Pereira, Mariozinho Fernandes e, então na Rádio Nova, o Jornalista Augusto Oliveira, de fazer aquilo que considero terem sido as minhas mais bem conseguidas reportagens culturais. Visitei – juntamente com operadores de som – várias ilhas e tivemos oportunidade de realizar documentários de razoável valor.

Infeliz e doridamente triste os arquivos voaram da Rádio. Havia aí documentos importantes: testemunhos de gente que por aqui já não canta. Eram na verdade importantes documentos. Alguns desses trabalhos podem ainda ser refeitos … já agora com novas formas de edição. Por exemplo, fomos em 1996 (ou será 1995?) os primeiros a ter nos estúdios o Orlando Pantera e a sua percussão, no actual Estúdio de Produção da RCV, antigo Estúdio 2.

Pantera queria trabalhar ritmos como a Tabanca e o Batuco com recurso a percussão. Gravamos o primeiro dessa experimentação. Degustamos a génese da obra. O arquivo sumiu. Só depois veio ele preferir a guitarra em detrimento da percussão. Nunca me explicou os motivos embora tenhamos tido várias ocasiões para tal.

Veja: na véspera da morte de Ano Nobo o entrevistei de noitinha. Fui o último Jornalista com quem falou. Magoadamente não temos esse arquivo. Foi um convite do João Branco, responsável por esta minha incursão pela Rádio, que quis pegar Ano Nobo para um trabalho no âmbito da produção da obra Nação Teatro, livro que é um importante documento histórico. Para meu conforto julgo que o João deverá,ainda, estar na posse do suporte contendo a conversa com Fulgêncio Tavares. Há, ainda, as fotos, que são uma obra de arte e a serem utilizadas por todos como se tratasse d'algo de dominio publico. Na verdade, julgo, a entrevita com Ano Nobo foi o mais triste episódio da nossa vida profissional.Foi na terça a entrevista. Na quarta-feira morre. Sáimos de Lém Pereira já era noite. Ano Nobo gabou-se de boa saúde. Abriu-nos o baú das obras por publicar. Mal julgavamos que horas depois deixasse-nos sem se despedir. Até lá deverá ainda estar um gato que ele nos doou. Nunca mais lá voltei. Estou a dizer isso, para tentar ou procurar defender a ideia de que a cultura em Cabo Verde é vista assim divulgada como sendo a agenda de artes e espectáculos. Do Património (material e imaterial) nada se fala. Alías, não tem havido, por parte dos promotores da Cultura, essa necessária disponibilidade e/ou "espertice" para com o Jornalista criar uma rede de difusão cultural nos Média. Por cá, pelo que divulgamos, eu incluindo, tem-se resumido ao entretenimento e alguns aspectos das festas de romaria, festas municipais - na sua vertente baile - e uma certa literatura.


Há por aí gente com alma e brio a produzir arte e cultura de qualidade. Veja os penteados novos que as moças exibem, veja o modo como o mercado livre está a mudar radicalmente a nossa vestimenta. Veja a forma como todos se comportam perante a flora e fauna cabo-verdianas. Veja o movimento de hip-hop, rap, dança, escrita. Nos bairros ditos periféricos há delinquência.

Entretanto a maior riqueza está nos jovens, homens e nas mulheres que diariamente, sem que saibamos dão cultura ao povo da zona. A Comunicação lá não está. Quero mostrar aos cabo-verdianos a dinâmica nos bairros da Cidade, incluindo o Platô. Claro, também, irei aos habituais centros de exibição cultural e explorarei os aspectos que fazem de nós cabo-verdianos.

KRIOL RÁDIO: Num país onde só é cultura as manifestações que tenham a legitimidade das elites, não receiam que o Terra Activa seja votado à indiferença pelos habituais produtores de cultura?

E.R.: Por esta e restantes putativas “indiferenças” proponho promover o debate de questões relevantes para a compreensão da Cultura cabo-verdiana, com realce para a preservação do Património.

Contribuir para a materialização de parte substancial das recomendações saídas do “Fórum sobre a Economia da Cultura”, realizada em Novembro de 2008 na Cidade da Praia.

Constituir-se num desafio aos demais produtores para que à Cultura seja dado o devido e merecido destaque no panorama audiovisual cabo-verdiano, quer seja Televisão ou Rádio.
Informar produtores e agentes culturais das ferramentas que propiciem e fomentem um mercado cultural que seja a um tempo enriquecedor da nossa identidade nacional e contribua para a sustentabilidade económica do País e sua Cultura.
Ser um espaço para a divulgação e, ao mesmo tempo, de promoção dos novos talentos e das novas tendências na área das artes e do espectáculo.

Com a difusão televisiva do programa os criadores e, sobretudo, os produtores e agentes culturais ficarão na posse de conhecimentos que lhes permitam, por exemplo, saber: elaborar e formatar projectos de âmbito cultural; enquadrar projectos na Lei do Mecenato; saber os factores que valorizam projectos; conhecer as fontes de financiamento; proceder convenientemente à captação de recursos e laborar planos de marketing cultural.


KRIOL RÁDIO: Sendo editor cultural da Rádio de Cabo Verde, responsável pela produção de um Jornal e um Magazine, porque este piscar de olhos à Televisão?

E.R.: Quero ter um programa com esta ambição que expliquei. Rádio ou Televisão é-me indiferente. Agora há cerca de 14 anos que não trabalho em cinema. Fiz várias formações entre as quais produção cinematográfica. Julgo oportuno experimentar esta nova “cara”.



KRIOL RÁDIO: Concretizar semelhante empresa requer a mobilização de recursos de vária ordem. E estamos a falar de um país onde os patrocínios e o mecenato cultural são bastante incipientes…

E.R.: O Programa visa também as empresas, pois por mais que o investimento na Cultura tende a crescer são, ainda, incipientes as iniciativas empresariais de financiamento, patrocínio e apoio às actividades culturais. Assim sendo, esperamos, através da informação, levar os decisores privados a compreenderem a importância do patrocínio cultural na economia da Empresa.

Para a materialização de Terra Activa, em termos de recursos financeiros, vai a Produção propor o financiamento deste projecto à instituições públicas e privadas.

Em contrapartida propomos, através de um pacote que inclua publicidade no início do programa e na Ficha Técnica bem assim nas promoções do mesmo (em cartazes, camisolas e convites) reforçar a imagem institucional das marcas e/ou instituições públicas ou privadas que financiem ou patrocinem o presente projecto.

Propomos ainda destacar o incentivo que esses financiadores fazem a promoção da Cultura nacional, em espaços, num ângulo de abordagem em que destacamos o compromisso dessas entidades com a Cultura.
Estou em crer que tudo vá dar certo. Julgo estrear o programa ainda em finais de Julho ou meados de Agosto deste ano. Creio que poderemos contribuir para a mitigação desta ideia redutora que temos da Cultura.

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