Cabo Verde começa a ter emissões radiofónicas produzidas localmente na metade dos anos 40, mas já cerca de uma década antes a tecnologia da telefonia sem fios já era, para alguns, uma realidade e para outros uma reivindicação.
Cerca de um mês depois, na mesma publicação, o relato de uma viagem de barco entre a ilha do Fogo e a Brava refere que os passageiros ouviram concertos por rádio, numa experiência com o posto transmissor de bordo. Ainda em 1935, quando em Outubro começa a guerra entre a Itália e a Abissínia, o "Notícias de Cabo Verde" desdobra-se numa cobertura pormenorizada, a partir da radio-telefonia.
Para além dos estúdios, onde começou a cantar Fernando Quejas e onde mais tarde Pipita Bettencourt e seus rapazes actuavam regularmente, era um clube social, onde se organizavam récitas e bailes. Permaneceu durante décadas, e mesmo depois de ter-se convertido na Rádio Nacional, após a independência, no local hoje ocupado pela sede do BCA, na Praça Alexandre Albuquerque, no Plateau.
E precisamente dois anos depois, também no mês de Junho, e também no Mindelo, o jornal noticia a inauguração da chamada "rádio Pedro Afonso" - mais precisamente, posto experimental CR4AC, com emissões das 20h às 22h, às terças, quintas e domingos.
José Pedro Afonso, que como radiotelegrafista da armada portuguesa chegou a S. Vicente no início dos anos 40, acabou ficando. Trabalhou na Casa do Leão e foi proprietário de um bar. "Verdadeiro entusiasta por tudo quanto se referia à rádio, foi um dos pioneiros da rádiodifusão em Cabo Verde, tendo fundado a já extinta estação CR4AG, que foi muito popular na sua época", recorda-o o jornal "O Arquipélago" por ocasião do seu falecimento, em 1973, aos 63 anos. Antes ainda destas duas rádios pioneiras em S. Vicente, terá havido uma outra iniciativa. Segundo Malaquias Costa nos relatou numa entrevista em 1998, um outro português, chamado Cunha, radio-telegrafista nos Correios, foi o primeiro a ensaiar criar uma emissora. "Era em sua casa, e as emissões chegavam apenas às casas vizinhas", recorda o músico. Cunha deveria passar discos apenas, pois, segundo Malaquias, foi com Pedro Afonso que se começou a usar microfones, o que permitiu que os artistas actuassem em directo.
Para além da sua contribuição para os media cabo-verdianos da altura - em 1951, o "Notícias de Cabo Verde" felicita-o por ter melhorado os serviços, "fazendo-se ouvir em quase todo o arquipélago" - Pedro Afonso deixou para a música cabo-verdiana um dos seus três filhos, o pianista José Afonso, residente em Lisboa.
Voltaremos em breve a este tema, pois ainda há muito para saber ou recordar sobre as duas rádios mindelenses que fizeram história e sobre a RCCV, da Praia.
A RÁDIO Clube de Cabo Verde foi fundada na Praia em 1945, pelo Alvará nº 2/945. Em Maio desse ano, após a publicação dos estatutos no Boletim Oficial, a direcção faz circular uma carta convidando pessoas a darem o seu apoio à iniciativa, tornando-se sócios-fundadores. Fernando Quejas, que nos facultou a carta recebida na altura, foi um dos que aderiu, e iniciou aí a sua carreira de cantor.
A iniciativa surgira em Novembro de 1944, relata num artigo publicado no "Novo Jornal Cabo Verde", em Maio de 1995, o médico e investigador Henrique Santa Rita Vieira: "O chefe dos serviços dos CTT, Rogado Quintino, facultou, com o acordo do governador João de Figueiredo, um aparelho emissor que se encontrava fora de uso, e graças ao saber de Manuel Tomaz Dias, funcionário da Rádio Marconi, as transmissões radiofónicas entraram em actividade."Um artigo de três páginas publicado no "Boletim" em Outubro de 1950 e assinado por Antero Osório recorda também os primórdios da emissora - cujo berço, revela o autor, foi a filial da Companhia Radio Marconi, na Achada de Santo António -, quando era chamada simplesmente "Rádio Praia". Temos poucas informações dos primeiros cinco anos da RCCV, mas a partir de 1950 ela adquire mais força. Em Maio desse ano, na mesma altura em que é declarada corporação de utilidade pública pelo governo da colónia, a emissora organiza um concurso de conjuntos musicais que desperta grande entusiasmo.
O "Boletim de Propaganda e Informação" (Junho de 1950) revela que o prémio inicial de 500 escudos, que seria o único, acabou por subir para 1.500 para o primeiro lugar, pois as contribuições que foram chegando, num total de 4.000 escudos, permitiram compensar todos os cinco grupos participantes - cujos nomes, se existiam, e os componentes, infelizmente a publicação não refere.
O concurso realizava-se através de votação dos ouvintes, que deviam enviar uma senha indicando o seu grupo preferido, o que aconteceu na Praia, no Fogo e na Brava, pois problemas de transporte impossibilitaram a distribuição das senhas em outros pontos do arquipélago, segundo o "Boletim". Contudo, ficamos a saber que a RCCV chegava a todas as ilhas. No ano seguinte, na edição de Março dessa publicação, é anunciada uma remodelação dos programas da RCCV. Ao longo de muitas edições, a partir de então, a última página do "Boletim" é preenchida com a programação da emissora.
Quanto à música cabo-verdiana, ficamos a saber pela programação o que se podia ouvir: Pipita e seus rapazes e grupo Unidos de Belém aparecem frequentemente, ao longo dos anos 50. Pipita (Pedro Bettencourt), recorde-se, além de músico e professor - manteve durante algum tempo uma escola de música na Praia - é pai dos músicos Mário (Russo) e Quim Bettencourt. O seu grupo aparece por vezes a acompanhar Rui Vera-Cruz em programas de mornas. Fernando Quejas e o Conjunto Florestais aparecem também com frequência, assim como uma formação intitulada Rico's Creoulo Band, para além de concertos da Banda Municipal da Praia, às quintas-feiras.
Ao completar um quarto de século, em Maio em 1970, teve lugar uma série de actividades sociais, como um almoço de homenagem aos fundadores e um baile, para além de uma emissão especial, com colaborações de Anastácio Filinto Silva, Ramiro Azevedo, Raul Barbosa, entre outros. O "Arquipélago" destaca ainda um programa de meia hora com o conjunto Doc Bay, formado pelas irmãs Benrós de Melo (Georgina e Viviane) e Pedro Bettencourt. A RCCV existiu até a altura da independência, quando apenas a actividade de radiodifusão se manteve, então como Rádio Nacional.
Estes breves apontamentos não têm a pretensão de contar a história deste meio de comunicação em Cabo Verde - resultam, simplesmente, do que encontrei nos periódicos cabo-verdianos ao procurar referências à música e seus personagens ao longo do século XX. Mas quem sabe estas linhas possam contribuir para despertar o interesse de outros investigadores, pois é uma história que merece um trabalho específico e com profundidade.
"Uma história de ouvintes exigentes"
Para além de "Claridade" - "que arrancou a sua existência consciente somente a meia dúzia de anos ou pouco mais da forte malha tecida pela resistência passiva que paira sobre o ar carregado dos nossos climas" -, do aparecimento de "Certeza" e de "Cabo Verde" ("Boletim de Propaganda..."), além do persistente "Notícias de Cabo Verde", o autor coloca a radiodifusão "na cúpula" da mídia da época.
Osório exorta a que, do campo material, os responsáveis procurem obter melhoramentos técnicos, a que não faltem com as quotizações e que, no campo moral, façam guerra aos detractores, impedindo "ventilar questões pessoais ou que se travem lutas de parcelas em detrimento das regalias da colectividade".
Meses depois, Guilherme Rocheteau, em "Caminhos da Radiodifusão" ("Boletim", Janeiro 1951), ressalta a responsabilidade das rádios face à situação de insularidade e atraso."Dispondo de duas ou três estações [na altura, a RCCV, a Rádio Clube do Mindelo e a chamada Rádio Pedro Afonso] (...) não é cedo demais que elas cumpram desde já os objectivos da sua superior finalidade. Há que lhes determinar uma posição de estabilidade e permanência, nunca as desvirtuando fazendo delas um recreio e um capricho de grupos ou classes, e confiar-lhes a penetração sistemática de todas as camadas sociais, numa campanha sem precedentes de renovação técnica e de cultura popular", afirma.
Rocheteau esclarece o que define como renovação técnica: "A preparação do povo de modo a intervir, efectiva e largamente no plano de ressurgimento que um dia se determinar para a agricultura, para a indústria e a economia de Cabo Verde, através dos conhecimentos que lhe permitam transitar dos processos antiquados aos mais modernos resultados das ciências". "Mais facilmente do que pela imprensa, pela Rádio é de se tentar a consciencialização do indivíduo, na luta contra o analfabetismo, na educação técnica da grande massa, na necessidade de informação cultural, na assistência científica aos trabalhadores, etc.". Pedia demais o poeta?
Para outro poeta, Jorge Barbosa, a rádio banalizara-se por volta de 1952. Ou terá sido simplesmente enfado o que o levou a escrever a crónica "Nada aqui acontece (no mesmo "Boletim", em Novembro desse ano): "Tudo vem atrasado, as modas, a música, os livros, as cartas dos amigos. Apesar da rádio encurtar as distâncias, pouco ouvimos as suas novidades. Já lá vai o tempo em que às horas certas dos noticiários e fados da Emissora Nacional, dos comentários da BBC.
Sem criticar nenhuma das emissoras cabo-verdianas em particular, o trecho vale pelo que revela do interesse despertado pela rádio nos seus primórdios. Na mesma página, Jorge Barbosa desfaz um mal-entendido com pinceladas de bairrismo que quase chega a opor o poeta a Orlando Levy, na altura locutor da RCCV.
Barbosa escrevera num número anterior sobre a intenção de se criar uma nova rádio em S. Vicente - devia se referir à Rádio Barlavento, que se torna realidade em 1955. "Através desta, então, com as nossas mornas e as nossas poesias, o arquipélago enviará a sua melhor e a sua mais simples mensagem a outras terras e a outros povos".
Ouvintes exigentes foram coisa que não faltou às rádios cabo-verdianas. Em Agosto de 1953, um leitor do "Boletim" que assina com as iniciais V.J. critica o excesso de música, "que fulaninho dedica a fulaninha com muitas saudades...", e a falta de programas de interesse mais geral, bem como "a exiguidade das `Notícias do Arquipélago'. "Então não acontece mais nada nesta nossa terra senão... o movimento marítimo? Não nascem gémeos nem morrem um desses velhos que mereça a pena dar a notícia? Não há sequer uma cena de pancadaria ou um choque de automóveis?", questiona o leitor e ouvinte.
A radiodifusão nunca deixou indiferentes os cabo-verdianos. Ainda que nos primeiros tempos poucos tivessem o privilégio de possuir um receptor, isso não impedia os menos abastados de acompanhar as transmissões, já que grupos de pessoas reuniam-se onde houvesse um rádio a funcionar, como vimos no trecho de Jorge Barbosa.
É interessante notar, quanto à sua importância, que já pelos finais dos anos 50, o jornal "Notícias de Cabo Verde" trazia em todas as edições uma coluna intitulada "Rádio-Reporter", com notícias e comentários sobre os programas e a performance dos locutores das emissoras então existentes. A partir dos anos 60, refere João Nobre de Oliveira em "A Imprensa Cabo-Verdiana", muito mais gente poderá possuir um aparelho de rádio. O historiador atribui aos emigrantes um papel importante nesta mudança.
"Esse fenómeno provocou uma revolução na comunicação social em Cabo Verde. Pelo menos na área da rádio a comunicação deixou de ser elaborada tendo em vista apenas uma elite interessada, era toda a população que passava a ser o destinatário da mensagem radiodifundida", escreve Oliveira, lembrando ainda o acesso que se tinha a rádios estrangeiras, facto que o PAIGC não deixou de aproveitar durante a luta pela independência, com a sua Rádio Libertação, emitida a partir de Conacri.
Por sua vez, a rádio fora importante também para a administração colonial. No seu artigo ("História das transmissões radiofónicas na cidade da Praia e recinto de lazer", "Novo Jornal Cabo Verde", Maio de 1995), o médico Santa Rita Vieira, homem atento à realidade do seu tempo, dá como exemplo o facto de que a RCCV, nos seus primeiros tempos, "facilitou a actividade do Governador assoberbado com os problemas resultantes da última crise provocada pela seca.
Vinte anos mais tarde, no período de transição para a independência, os militantes do PAIGC tomam o poder na Rádio Barlavento, em S. Vicente. Tirar a emissora das mãos de quem alinhava com o poder colonial constituiu na altura, para além das suas implicações concretas na mobilização da população, um acto politicamente simbólico, e também revelador da importância deste veículo.
A direcção do Grémio Recreativo do Mindelo, na altura presidida pelo médico José Duarte Fonseca, reuniu na sua sede, no dia 21 Agosto de 1954, várias personalidades para apresentar a aparelhagem que acabara de receber para os seus serviços de radiodifusão.
O Governo na Província apoiou financeiramente a aquisição do equipamento, considerando o Grémio um organismo de utilidade pública, informa a revista "Cabo Verde - Boletim de Propaganda e Informação", que publica essa notícia no seu n.º 60, sob o título "Radiodifusão em S. Vicente".
Em Junho do ano seguinte, o nº 69 da mesma publicação informa que as emissões tiveram início e, um mês depois, que a Rádio Barlavento foi inaugurada oficialmente, com um emissor de 1 Kw, emitindo diariamente na banda dos 50,2 metros, das 18h30 às 19h30.
Começa assim a história de quase duas décadas de vida da Rádio Barlavento, a última a ser criada entre as emissoras pioneiras em Cabo Verde, todas de iniciativa de particular, e a primeira a ser "nacionalizada" pelo PAIGC, ainda durante o período de negociações para a independência - precisamente dez dias antes do acordo firmado a 19 de Dezembro de 1974.
Ainda nos seus primeiros anos, dos seus estúdios no edifício onde hoje se encontra o Centro Nacional de Artesanato, na Praça Nova, saíram emissões e gravações que são marcos na produção cultural de Cabo Verde.
As primeiras gravações realizadas no arquipélago e que vieram a ser editadas em disco foram aí realizadas. Mité Costa, a cantar mornas de Jotamonte e acompanhada por um grupo dirigido por ele próprio, foi a primeira da série de 45 rpm "Mornas de Cabo Verde", editada pela Casa do Leão. Seguiram-se Amândio Cabral - no disco com a primeira gravação da hoje célebre "Sodade" - Titina, Djosinha e outros.
Foi também a partir dos estúdios da Rádio Barlavento que Sérgio Frusoni e Nho Djunga divertiram os mindelenses com o humor acutilante das suas crónicas que, à hora certa, atraíam muita gente para ouvi-las pelos altifalantes colocados no exterior do prédio.
Bem antes disso, foi também nesta emissora, quando completava um ano de existência, em Julho de 1956, que Baltasar Lopes da Silva leu, em duas sessões, a sua palestra indignada sobre o que o sociólogo Gilberto Freire escrevera sobre Cabo Verde. E também um texto emocionado sobre a importância da obra de B.Léza, no dia da sua morte, em 1958.
Ao longo dos anos 60, praticamente nada encontramos nas páginas d'"O Arquipélago" - único órgão de informação generalista em Cabo Verde na altura - sobre a Rádio Barlavento. Só em 1977, quando se comemora o terceiro aniversário da sua guinada de rádio da classe abastada e conservadora para instrumento do PAIGC, é que, pelas páginas do "Voz di Povo", ela volta a ser notícia, pelo que a nossa pesquisa conseguiu apurar.
No período turbulento em que se desenrolavam as negociações entre o PAIGC e o governo português, a rádio - nascida no interior do clube que reunia a elite de S. Vicente - assumira uma posição contrária à luta pela independência. "Pessoas afectas aos intentos neocoloniais spinolistas se serviam desse meio de comunicação de massas para os seus fins manipuladores", escreve o "Voz di Povo" a 10 de Dezembro de 1977.
Assim, a 9 de Dezembro de 1974, as suas instalações são ocupadas por um grupo que havia dois meses vinha preparando esse momento - como relata num depoimento publicado em Dezembro de 1985, no "Tribuna", o jornalista Júlio Vera-Cruz, que tinha na altura 16 anos - e funda-se então a Rádio Voz de S. Vicente.
"A transformação da Rádio Barlavento em Rádio Voz de S. Vicente foi um acontecimento de peso no processo de descolonização em Cabo Verde, não só por pôr termo à campanha de intoxicação então levada a cabo por certa camada da pequena burguesia reaccionária, mas também por dotar o povo de Cabo Verde e o Partido de um instrumento eficaz no esclarecimento, mobilização e organização populares com vista à independência", lê-se no "Voz di Povo", que noticia que, ao longo de mais de duas semanas, haveria actividades a assinalar o terceiro aniversário da tomada da rádio.
A comemoração dos dez anos foi ainda maior, com uma emissão contínua de 36 horas preparada especialmente para a ocasião, em que actuaram Travadinha, Luís Morais e muitos outros artistas. Numa cerimónia realizada na Escola Preparatória Jorge Barbosa, José Araújo (na altura presidente da Comissão Nacional de Informação) discursou a recordar o papel que a rádio passou a ter como instrumento de mobilização, na altura.
Corsino Fortes, então secretário de Estado da Comunicação Social, anunciou, para dali a alguns meses, o lançamento da Rádio Nacional de Cabo Verde (RNCV), que viria por sua vez a determinar o fim da Rádio Voz de S. Vicente, ao absorvê-la, como fizera com a Rádio Clube de Cabo Verde, da Praia. Durará seis anos o regime de "rádio única": em 1992 regressam as iniciativas privadas que, de lá para, cá não pararam de se multiplicar.
Fonte: http://www.paralelo14.cv/
" (...) Criada em 1946, a Rádio Clube do Mindelo iniciaria as suas emissões em Junho de 1947, emitindo ás terças, quintas, sábados e domingos entre as 18H e as 19H30mn. Dez anos mais tarde, a proclamada “Voz de São Vicente” emite diariamente, na banda dos 62 metros, frequência de 4.755 kc/s das 18h30 às 20h. Com uma programação variada que incluía desporto, actuações em directo e, na década de 60, o seu próprio concurso de músicos e conjuntos á semelhança da Rádio Praia.
ResponderEliminarHistória vivida: http://resistir.info/portugal/relato_da_bola.html
ResponderEliminar