sexta-feira, maio 25, 2012

Quem tem medo dos políticos? (II)


O deputado Abraão Vicente considera que os jornalistas correm dos políticos como o diabo da cruz sob pena de serem conotados com os partidos. Um distanciamento que, diz, não abona ao cultivo de boas fontes de informação. O seu caso pessoal serve de exemplo. Queixa-se de que desde que está na política ainda não teve qualquer tipo de “aproximação especial” em relação aos jornalistas. Talvez não seja despiciendo recordar um princípio caro ao jornalismo que é o do contacto/distância. Ou seja, o jornalista não deve tecer relações de cumplicidade ou de amizade estreita com a fonte de tal sorte que a sua independência, rigor e imparcialidade sejam beliscados. A credibilidade de um jornalista demora uma vida a construir, mas basta um simples deslize técnico, ético ou deontológico, para esboroar que nem um castelo de areia. Com isto não quero dizer que o jornalista não deva ser cordial no trato com o político. 

Não acredito por isso que este relacionamento seco tenha que ver com o medo ou a competição. Quiçá desconfiança. Um mergulho na história da imprensa cabo-verdiana ajuda-nos a entender um pouco o comportamento dos jornalistas cabo-verdianos. Do século XIX ao dealbar da independência, os fazedores de opinião, proeminentes figuras da ilustração cabo-verdiana, estavam completamente espartilhados pela censura, um controlo que se acentuou com o Estado Novo, e os esbirros da PIDE-DGS. Ainda assim, a valentia e o patriotismo, levam-nos a assestar e a atirar atrevidas pedradas no estado de indiferença e abandono a que estas ilhas (des)afortundas estavam votadas.

Durante o regime de Oliveira Salazar, o noticiário da província era enviado pelo Centro de Informação e Turismo em forma de telegrama. Portanto, já vinha composto. Os outros noticiários eram transmitidos por morse pela Press Lusitânia, uma agência de notícias ligada ao governo português, e as notícias eram transmitidas já feitas, por conseguinte, sem qualquer possibilidade de as adulterar.

Rolando Martins, cuja actividade mais se aproximou da profissão de jornalista, conta que o trabalho dos radialistas consistia em “transformar a linguagem telegráfica em linguagem corrente colocando as pontuações, os quês, os dês, quando havia falha, tentando ver, mas com muito cuidado, qual a palavra que faltava, para não deturpar as coisas. Ou seja, as coisas vinham de tal maneira controladas que não havia meio de se pensar em fazer qualquer coisa que fosse contra a ordem do Estado Novo”.

Onde havia uma curta margem de liberdade de expressão era no noticiário local, mas o bloco era escasso. Na maior parte das vezes as “notícias” recaíam sobre os “fait divers” relacionados com as iniciativas sociais, as actividades do Governador, etc., temas que eram reportados pelos próprios sócios do Grémio (Rádio Barlavento), sobretudo os mais jovens que recolhiam as informações, elaboravam as notícias e levavam-nas para a rádio.

A oportunidade para se erigir, durante a fase de transição para a independência nacional, um ambiente de pluralismo político e de ideias, através de uma imprensa livre, rapidamente desvaneceu-se. De acordo com o João Nobre de Oliveira (Oliveira, 1997) “o novo regime em formação corta pela raiz qualquer hipótese de nascer uma imprensa independente na terra que se ia tornar independente. Cala mesmo toda a informação contrária. Só havia rádios para silenciar. Assim, o PAIGC controla a tipografia e vigia as outras publicações. Consegue a adesão da Rádio Clube do Mindelo; controla a Rádio Clube da Praia e tomada de assalto a Rádio Barlavento. No fim, acabou por fechar a Rádio Clube do Mindelo e fundir todas as rádios na Rádio Nacional de Cabo Verde, pondo fim às rádios privadas, ao mesmo tempo que acabava com o amadorismo no sector. 

O número de jornais diminuiu. Regista-se um rápido desaparecimento das poucas publicações que ainda se mantinham no país. O Arquipélago, extinto a 20 de Junho de 1974, cede lugar ao Alerta, cuja primeira edição acontece uma semana depois. Produto da campanha contra o Arquipélago, o Alerta, dirigido por David Hopffer Almada, vai procurar ser diferente do seu antecessor, e nesse sentido “foi um jornal de propaganda política, mas a favor do PAIGC, pelo que só duraria um mês”.

O jornalismo durante o regime do partido único está ao serviço da causa da reconstrução nacional. Segue o modelo autoritário e é colaborante com o esforço do governo no desígnio reconstrução nacional. A imprensa é, por conseguinte, um parceiro de desenvolvimento. 

Dirigindo-se aos jornalistas e quadros do partido que participavam num seminário que decorria no Instituto Amílcar Cabral, de 30 de Novembro a 5 de Dezembro de 1988, o primeiro-ministro, Pedro Pires, explicitava o seu entendimento sobre a importância da informação: ““Através de informação, damos notícias, damos conhecimento dos factos, mas também, através dela podemos formar. Podemos dar valores e orientações. Mas através da informação também lutamos. Quero dizer, fazemos com que os nossos dados prevaleçam sobre os dados dos outros”.   

O reforço do papel dirigente do partido na esfera ideológica, em particular através do fornecimento de orientações e do controlo da acção dos meios informação, estava acometido ao Conselho Nacional de Informação. Na opinião do responsável por esse gabinete de propaganda do partido-Estado, José Araújo, “o profissional da informação que milite ou não no partido deve ser, pois, antes de mais, um patriota esclarecido e um combatente decidido da luta pela reconstrução nacional. Todavia, a eficácia da sua acção está, naturalmente, condicionada por factores que, tendo a ver a formação político-ideológica, depende igualmente da sua aptidão profissional.  

O controlo sobre os órgãos públicos de informação é total. Em relação à imprensa a Constituição da Republica é indubitável: O art. 11º, nº 2, define os meios de comunicação social como propriedade do Estado. No entanto, o art. 41º consagra a liberdade de criação intelectual, artista e científica; o art. 42º, nº 1, garante a todo o cidadão o direito, impondo-lhe também o dever, de participação na vida política, económica e cultural do seu país; o art. 43º reconhece a todos a liberdade de expressão do pensamento, nos termos da lei.

A nova lei de imprensa, que substitui o decreto-lei nº 27495 de Janeiro de 1937, assume, de acordo com artigo 11º, o princípio de que o Estado reserva para si (nesta fase histórica da consolidação da independência e das instituições da Republica, da unificação do território insularmente disperso e do reforço da unidade nacional) o exclusivo de alguns meios de imprensa (rádio, televisão e agência noticiosa). Com efeito, considera-se de importância fundamental e do máximo interesse do país reservar a exploração de alguns meios de imprensa (de maior impacto), ao Estado, tendo em conta o seu papel na informação e educação das populações e na formação da opinião pública, o seu poder na transmissão de valores e, enfim, a sua força mobilizadora.

A Rádio Nacional de Cabo Verde (RNCV), as Edições Voz di Povo (E.V.P), a Televisão Experimental de Cabo Verde (TEVEC) e a Agência Noticiosa Cabo-Verdiana (Cabopress), funcionam junto da Secretaria de Estado da Comunicação Social, com natureza de serviços personalizados e sob tutela do respectivo titular. Os jornalistas são funcionários públicos, situação que não os ajuda a libertar-se da camisa-de-forças em que se encontravam subjugados.

Segundo o ministro da Informação e Desporto “os órgãos de comunicação social do Estado foram criados como serviços públicos do Estado e, até há muito bem pouco tempo, tinha aqui convindo que os componentes de tais organismos eram funcionários do estado. E é nesse quadro que os jornalistas aparecem”. David Hopffer Almada esclarece que a situação vem de trás, se calhar mesmo antes da independência: “Agora, depois da experiência adquirida, chegamos à conclusão de que a situação tinha que se alterar, para se poderem melhorar as condições do pessoal e atender às exigências que a missão impõe”.

Na mesma entrevista ao Voz di Povo, o ministro confessa nunca ter cometido um acto de censura: “Tenho a consciência tranquilíssima – é um princípio que eu tenho – por formação, sou contra qualquer tipo de censura. Sabe, eu vejo a função do jornalista um bocado como a função da magistratura (…) é esta mesma satisfação que eu quero ter – e que vou ter! – no dia em que eu sair daqui: o de nunca ter intervindo no exercício da função dos jornalistas”. 

Opinião diferente tem o jornalista David Leite. Num extenso artigo publicado no jornal “Opinião”, no início dos anos 90, embora reconheça os progressos técnicos e de equipamentos, o jornalista, a quem foi retirado o célebre programa “CARTAS NA MESA”, considera, no entanto, que havia uma desarmonia entre o crescimento verificado e uma política de pessoal que, ao invés de acompanhar de perto esse crescimento, pecou pela incoerência, pelo amadorismo, pela mediocridade, a todos os níveis, e pelo absentismo intelectual. 

Na opinião do jornalista, que se queixa de ter sido perseguido pelo regime de partido único com processos disciplinares e transferência forçada para a Praia, negar a existência de censura na informação é o mesmo que negar a evidência do partido-único. “Embora não se possa falar de uma censura a Pinochet ou à Salazar (abrenúncio!), fico perplexo ao ouvir o ministro falar em abertura, transparência, liberdade de imprensa e quejandos”. Assim, considera David Leite, o jornalista desfrutava de uma liberdade de expressão silenciosa. “ Liberdade de se exprimir desde que não se exprimisse! Para poder singrar e não ser marginalizado, era mister que soubesse o que devia dizer e o que devia calar, fingir que não viu ou não tomou conhecimento. Numa palavra: a auto-censura, para não pôr em causa a sua carreira. Será isto censura ou será antes uma das vertentes daquela tal “democracia” à cabo-verdiana que nos foi imposta?

O jornalista arrola uma série de acontecimentos que ficaram escondidos na penumbra ou do “não dito” dos média, sobretudo os estatais. Uma indiferença e um desinteresse que só demonstram a relativa liberdade de expressão de que desfrutavam os agentes de informação. “Quem noticiou as prisões arbitrárias e torturas cometidas aquando da reforma agrária, em 1981? Quem falou das manifestações em Mindelo, quando a policia arremeteu à bastonada sobre adolescentes indefesos, arrebatando as câmaras fotográficas para que não houvesse registo dos factos? E as outras manifestações reprimidas, quem falou delas? Quem denunciou os desmandos da policia de “Ordem” Pública? Quem falou da impressionante manifestação da população da Praia, aquando do famigerado assalto à Sé Catedral? Quem tocou nos escândalos, nos assuntos políticos considerados delicados, nos casos de corrupção – que não são poucos - que enfermam a maquina administrativa do Estado?

Denúncias ignoradas pelo ministro da Informação e Desporto, David Hopffer Almada, cuja cabeça era pedida pelo Movimento para a Democracia, ainda em fase de constituição como força política, por “não ser a pessoa indicada para, em circunstância nenhuma, conduzir a conjuntura política”.

O estertor do regime evidencia alguns sinais de afrouxamento do controlo e da censura aos meios de comunicação social. Embora as opiniões se dividam quanto ao estado de espírito com que o PAICV encarou o processo de abertura política, principalmente quanto ao futuro que lhe estava reservado num contexto multipartidário, o certo é que o partido começa, finalmente, a criar as condições para que a imprensa largasse as barras da sua saia protectora. 

Prova disso é a realização, no dia 17 de Abril de 1990, de uma reunião alargada do ministro da Informação e Desporto com os jornalistas e os responsáveis pelos órgãos estatais de Comunicação Social. O encontro contou com a presença de jornalistas em serviço na Praia, S. Vicente, S. Antão, Sal e Fogo, e teve como principal objectivo “a análise e discussão do papel reservado aos órgãos estatais no processo de mudança que o país vem conhecendo e num futuro regime assente na democracia pluralista”.

Das conclusões e recomendações desse conclave, condensadas num documento emitido pelo gabinete do ministro Hopffer Almada, no dia 19 de Abril do mesmo ano, enaltece-se o contributo dos meios de comunicação social para desenvolvimento socioeconómico, político e cultural de Cabo Verde, malgrado as falhas, deficiências e carências verificadas, tendo-se destacado o papel meritório dos órgãos estatais, sobretudo, nos últimos anos, na gestação dessa nova fase da vida política nacional.

Tendo em conta o processo de mudança com vista a institucionalização de um regime pluripartidário em Cabo Verde, concluiu-se pela necessidade de adequação dos órgãos de comunicação social do Estado e do seu suporte legal e institucional ao novo contexto político emergente, por forma a que possam “continuar a desempenhar, com dignidade, responsabilidade e utilidade, o seu papel no seio da sociedade cabo-verdiana”. Mais se constatou ser necessário preparar as condições com vista a ser garantida, no quadro pluripartidário, a equidistância dos órgãos de informação em relação a todos os partidos que viessem a existir.

Do encontro saiu ainda uma recomendação no sentido de se desenvolver acções concretas para uma formação permanente e multiforme dos jornalistas, visando a sua cada vez maior capacitação para a análise dos factos e fenómenos sociais e políticos assentes na objectividade, isenção, imparcialidade, honestidade e seriedade. A propósito salientou-se a importância da auto-formação no processo de superação profissional, alargamento de conhecimentos, e melhoria da qualidade do trabalho dos jornalistas.

Continua…


1 comentário:

  1. Caro Amigo e Colega Carlos. Muito bom, pertinente e elucidativo esse teu artigo. Gostei, pois partilhaste connosco informações e reflexões extremamente uteis para todos nós interessados em compreender as contradições e as dubiedades da nossa imprensa - uma imprensa feita por muitos bons e ousados profissionais, mas que exibe também profundas fragilidades. Esta tua reflexão é uma pedra útil na construção de uma imprensa cada vez mais consciente e capaz de apresentar-se como um verdadeiro espaço de uma mediação "despretenciosa" dos inumeros interesses da nossa sociedade.

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